Cair nos braços de Vénus de Milo – Os Television em Marquee Moon (1977)
In the fragrance sweet of the evening air
I could leave this world
Quite without a care
Television, “1880 Or So”
Um percurso para chegar a Tom Verlaine (né Miller), o mais belo pescoço no mundo do rock’n’roll? Nascido em New Jersey em ‘49, mudou-se para Delaware aos seis anos, passou a artífice da guitarra ao ouvir o single dos Stones de ‘66, "19th Nervous Breakdown", ou assim diz o mito, e em ‘68 já estava a viver em Nova Iorque. Foi por essa altura que ele e Richard Hell formaram os Television, mas na altura o apelido de Hell ainda era Meyers e o nome da banda ainda era Neon Boys. Desentendimentos entre os dois levaram à saída de Hell dos Television e pelo menos desta vez a humanidade pode ficar grata com os resíduos da fissão nuclear, pois o álbum que Hell gravou com os seus Voidoids, Blank Generation, é brilhante, de catalogação difícil, mas definitivamente incompatível com o som de Marquee Moon. A velha história do espírito apolíneo (a luz, a ordem) dividido do espírito dionisíaco (o caos, a noite, o vinho, o irracional)? Verlaine é um guitarrista preciso, mas não é Apolo. Que Hell desabotoe a camisa para a capa do seu álbum quanto quiser, mas o seu métier é o de poeta, não o de bacante.
A substância amorosa pode vir em esguichos (“Love Comes in Spurts”), mas não a batida deste Blank Generation, que é irremitente e incessante, menos Ramones que Wire, um garage rock dos anos 60 nem puramente melódico nem dissonante, com a vantagem de acabar por ser os dois, como na magnífica "Liars Beware". Está quem ouve a tentar recuperar da qualidade desta faixa e logo a seguir toca "New Pleasure", e a seguir o country de uma voz de ouro como a de Mick Jagger, acompanhado por uma guitarra de viga de ferro em "Betrayal Takes Two". E depois os coros da música seguinte. E na seguinte, a guitarra CBGB. E depois outra que parece Libertines, mas os Libertines não eram ainda nascidos. E depois outra ainda. A vida (der anderen) a passar-nos, num relance de meia hora, à frente dos olhos. Cena de cama inspiradora? “I’ll close my eyes while you take off my clothes / No, wait a minute till this feeling goes”. O Verlaine vai ter de trabalhar para explicar à editora porque correu com este génio da banda.
Marquee Moon começa com "See No Evil", um “samba de uma nota só” onde a guitarra ritmo precisa de cerca de vinte segundos para sair do mesmo acorde e a lead não está a fazer muito mais que delinear melodicamente a mesma coisa. A insistência parece ser reflexiva, Verlaine apresenta-se explicando o que quer (“I understand all / Destructive urges / It seems so perfect”). O solo que se segue começa com quatro investidas celestiais, sequenciando cada vez mais alto o mesmo tema, para depois cair como trovão, desenvolver uma nova frase e terminar numa nova subida. Depois do êxtase colhido com este solo, com o gozo do lobo depois de se despir da sua pele de cordeiro, ei-los: “Don’t say unconscious / No, don’t say doom / Well, if you gotta say it / Let me leave this room”. Os segundos finais não podiam ser mais claros: querem dar cabo do futuro junto daqueles de quem gostam. O homem do pescoço de cisne não quer ser o deus do Sol.
A canção "Friction" é muito mais que a pausa de alguém que se queixa da nossa dic(k)/tion. É também o ambiente ameaçador do riff (“some big set up”), dos rugidos sinistros da guitarra (“Where silence spreads / And men dig holes”), a libertação do refrão com os seus coros, semelhantes aos de Hell, e sobretudo o solo, ataques cromáticos que parecem milhares de motores a acelerar. Verlaine invocou forças maiores que as que pode dominar (“Stop this head motion / Set the sails / You know that all us boys gonna wind up in jail”) e acaba por usar uma descida rockabilly para terminar a música. Tanta violência insinuada, tanto mistério e, no entanto, tudo extremamente dançável, cortesia do baixo de Fred Smith, que tem caminho livre na mistura para nos explicar como nos movermos neste estranho mundo. Quando, cerca de vinte anos depois, uma banda de Nova Iorque estava em vias de salvar o rock’n’roll (do quê?) mas o que queriam mesmo era “just trying to get to your appartment” e não conseguiam pensar de tão cansados, fizeram-se acompanhar, nesta "Is This It", dos Strokes, pela mesma precisão da guitarra solo, os mesmos pulos do baixo de "Friction".
História de uma fúria pessoal e intransmissível, "Marquee Moon" aplica a mesma táctica das músicas anteriores: arpejos sequenciados, na forma de pergunta e resposta, um baixo dançável. Verlaine declama apaixonadamente algo críptico. Conto de cemitérios e de Cadillacs, o mistério junta em si tudo – o beijo da morte, o aperto da vida, a loucura e a revolta, demasiada felicidade, demasiada tristeza, estar só à espera. Versão para a rádio? Agulha a começar nos quatro minutos e meio, a mesma exposição do tema inicial, logo seguida de um solo, primeiro notas baixas, começando a subir, meio blues, até se tornar fustigante, paranóico, fixo no registo agudo. Podem comer isto de faca e garfo, tal é a sua riqueza, o seu conteúdo melódico. A partir do oitavo minuto cada vez que um acorde soa ele vai subindo, até que a guitarra não tem mais para onde ir, e de facto é socorrida por acordes celestiais, fracos, os cigarros depois do paroxismo. De volta ao início: este riff tem tanto para mugir, e de novo a encantação da escuridão duplicada, do relâmpago, ouvir a chuva enquanto se escuta a tal outra coisa (que é linda).
O segundo lado do álbum não é tão forte como o primeiro. A "Prove It" é Talking Heads para estudantes de direito, a "Guiding Light" é a "I’m Set Free" dos Velvet Underground para quando não se querem lembrar das dores de uma separação amorosa. "Elevation" e "Torn Curtain" têm um som de guitarra que aponta para o que acabaria por se chamar post-punk. O coro de “Tears! / Tears!” e o piano em "Torn Curtain", por exemplo, são melodramáticos ao ponto de se tornarem irónicos. Já a guitarra nunca mente, e a saída desta música e de todo o álbum é dissonante.
O punk não saberia o que fazer com este objecto (que não era punk), rebelde e raivoso mas melancólico, e o post-punk encontrou na sua beleza fria, precisa, as soluções para surgir como uma nova voz na música popular. Quando o álbum seguinte dos Television, Adventure, foi lançado em ‘78, a banda já tinha sido relegada para segundo plano.
O piropo do pescoço de cisne é de Patti Smith. Um dia Verlaine encontra-a debaixo do toldo de uma tabacaria a proteger-se da chuva e aproximou-se para lhe perguntar “You’re Smith”, e era, e ele reconheceu-a porque ela estava na capa do Horses, o álbum mais importante de ‘75. Devo avisar que esta história, como a contei, não é minimamente exacta. Tom Verlaine era um músico inteligente e sensível e este Marquee Moon um grande épico, feito numa cidade grande e contraditória.
Francisco Fernandes