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X - Wild Gift

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O punk era espécie evoluída, digerida e em desintegração, quando os X trouxeram, em 1981, esta oferenda selvagem. Os X são Exena Cervenka, vocalista, John Doe, também vocalista e baixista; a eles se juntam B. Zoom, guitarrista, e D.J. Bonebreak, baterista. Formaram a banda em 77, ano feliz para o género, em Los Angeles. Tinham lançado o primeiro álbum, laconicamente chamado “X”, pela label Elecktra, que edita também este disco, e Ray Manzarek, dos The Doors, foi quem tratou da produção desse álbum e de “Wild Gift”.

Que o parentesco do punk é contestado por Londres e Nova Iorque não o díriamos aqui – o disco é americano até à medula, sem gota de insularidade: nestas músicas há rockabilly e Johnny Cash; o seu maior trunfo, parece-nos, foi o feliz casamento entre a velocidade assombrosa dos Ramones com a country music, e o segundo lado do disco é disso rico em exemplos, em músicas como “Beyond and Back” e “Back 2 the Base”. A Johnny Cash vão buscar os ritmos da ferrovia, tanto na guitarra como na bateria, e lembramo-nos de “Folsom Prison Blues” e da valsa da locomotiva em “I’m Coming Over”.

Casamentos felizes, dizíamos, é uma espécie em vias de extinção e tema maior em “Wild Gift”. A casa, símbolo metonímico dessa relação, oferece resistência: “Last night everything broke”, em “We’re Desperate”, e ainda “Every other week / I need a new address / landlord landlord landlord / cleaning up the mess / Our fucking life is a wreck”, na mesma canção. O sentimento surge de novo em “In This House That I Call Home”: “beautiful walls are closing in / looking at you / you’re having a nightmare”. Pior: “I gotta get in but there’s no room”. Em casa contemplam ainda a letargia do álcool: “Drain every beer left over at home / And listen to ghosts in the other room”, em “White Girl”.

John Doe nunca está longe dos procedimentos, somando-se a Exene, harmonizando. Doe canta como mel, Exene como vinagre; quando cantam juntos a mesma frase, Doe está em baixo a alicerçar as fundações e Exene acima a propagar a melodia – o dueto tem um verdadeiro sentido de urgência. Um exemplo: “Adult Books” começa com o ritmo trapalhão típico da CBGB, bar nova-iorquino que, servindo como montra do novo género que surgia, abriu as portas para as bandas da cidade, como os fundamentais Ramones e os vanguardistas Talking Heads, Television e Blondie. Esse ritmo angular típico das bandas da altura, dizíamos, inicia a música, mas a harmonia em “They’re all in a line” desconfigura por completo a construção anterior, mais moderna e próxima do punk, por uma mais clássica e gutural. Se durante a canção a estrutura verso/refrão vai negociando estas duas vertentes, no final da música a banda opta por harmonizar até ao fim. Outro: em “When Our Love...”, quando ambos se referem a “our love”, dir-se-ia que já não cantam, mas materializam uma coisa concreta no som das esferas celestes.

O ataque das guitarras em “Some Other Time”, tema maior do disco, é veloz e incisivo; quando Exene começa a cantar é verdadeiro contraponto: a guitarra é ramonica, mas a performance da vocalista vai buscar a uma história da música americana que precede em muito o punk: “Let’s not talk about bombs / or the brain impulses / of severed limbs”. Bombas e membros decepados seriam lírica punk bona fide, daí que dois cambiantes estejam em jogo, disputando-se, já nos primeiros segundos da música. Prece pacífica, alienada? Não parece funcionar: “You will always subtract your arms from my arms”.

O refrão, sórdido em simplicidade, optimista mórbido na época nuclear, diz ser hoje a véspera do fim do mundo; Exene decide ser prática: “It’s very bad luck to draw the line / On the night before the world ends / We can draw the line some other time”. Qualquer decisão, a ser tomada, sê-lo-á depois dos tempos – uma paixão, uma prisão conjugal tem muitas fraquezas; a ideia de que nos possa ultrapassar em vida é resistir à fragmentação individualista da sociedade – se os X querem aplicar os pressupostos revolucionários às cobertas, esta parece ser a sua maior tese – como noutros campos, a união faz a força.

Que trará a derradeira noite? A carruagem de Cinderela torna-se abóbora (“This midnight I will / Turn into a beer I will) e, com as luzes apagadas, só apalpando se encontram (“Dream of you between nightmares / and wars and toss and turn). Exene, cantando ironias a medo, mente: “I’ll make no mistakes / and I’ll behave”. Não queremos acreditar. É aí que está este “Wild Gift”.

Francisco Fernandes

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Francisco Fernandes (autor):


Francisco Fernandes nasceu em 1994 em Lisboa. Esteve no Conservatório D.Dinis, em Odivelas, onde teve o cuidado de não aprender nada, e propôs-se, já há mais de dez anos, a pegar nos álbuns que certo livro diz terem de ser ouvidos antes de morrer; está longe de cumprir esse objectivo, mas congratula-se por ainda não ter morrido. ​Espera um dia ter uma rádio pirata.

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