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Na idade de prata da música de intervenção

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Primeira foi a época do ouro, da prata, depois bronze, agora ferro: é a conhecida metáfora dos antigos para a agrura crescente dos dias, longínquo o paraíso, mulher e homem para lá dos portões do Éden, todo o pão servido com o suor do rosto. O intróito será perdoável porque curto e porque, espero, virá a propósito. Não quer este texto derramar luz sobre a época dourada, da qual nesta casa já se escreveu muito e bem, nem sobre os tempos que vivemos, onde, neste mister, penso estarmos piores que os do ferro:


pejoraque saecula ferri Temporibus

[«Séculos piores que a idade do ferro», Juvenal, Satirae, XIII, 28-30]


mas do segundo período, para tentar ver o que nele o primeiro desbotou e que o corrente tempo tem com ele a aprender.


Zeca Afonso lança Fura-Fura em setenta e nove, ano também do álbum Campolide, de Sérgio Godinho e, ainda que ambos de oitenta e dois, companheiros em espírito destes, Por este rio acima, de Fausto, e Ser Solidário, de José Mário Branco. Todos estes registos vêem a sua parte instrumental ficar mais rica, com orquestrações mais completas, entesourando a música em detrimento da palavra.


Pois que a palavra anda fugitiva: Fura-Fura fala dos Cabrais e da rainha, Fausto do Mendes Pinto e do rei, e o José Mário Branco anda no “pop-chula” e no “faduncho choradinho/de tabernas e salões”. Ou que a derrota social depois dos augúrios da revolução é tal que a música de intervenção avançou para se codificar mais, ou a liberdade tanta que o Portugal de antanho se pode reescrever pela classe popular.


Na primavera, marcelista ou não, “por mais que seja santa, a guerra é a guerra”, quero eu dizer, para se editar no Portugal da ditadura e simultaneamente, “pôr uma pedrinha na engrenagem”, a poética será clara ma non troppo, e se é sem medo que se canta “Quem viu morrer Catarina [Eufémia, camponesa alentejana morta pelo fascismo] / não perdoa a quem matou”, por outro lado, a lírica da época de ouro não deixou de trabalhar duplos significados, combinando o aparente inócuo, o cómico ou o surreal com o político.


Coisa agradável, sempre que curta, é darmos conta de uma lacuna, se outros nos dão (ou nós mesmos) meios com que a preencher. Tal se passou comigo no ano passado, próximo das celebrações do 25 de Abril, num concerto que o Sérgio Godinho deu em Lisboa, tendo ouvido pela primeira vez músicas que me tocaram grandemente e que as resgatei em casa. Muitas dessas canções desconhecidas fazem parte, vim a descobrir, dum mesmo álbum, Campolide, de setenta e nove. Elas revelam um músico em excelente forma (melhor que em Os Sobreviventes), são músicas da mesma forma talhadas, e, no entanto, fazendo de mim amostra e universo, há um desconhecimento da parte do público que seria um trabalho maior.


The times they are a-changin’: as estruturas da época de ouro da música de intervenção estão a ser ultrapassadas (o próprio Sérgio diz deste álbum e do anterior, Pano-Cru, que são álbuns de charneira, de transição), e, no caso de “Mudemos de assunto”, com a sua construção em duas partes, na mesma música. Na primeira parte, Sérgio Godinho está acompanhado de guitarra, baixo e percussão e o refrão são sílabas cantadas, como em “Os Índios da Meia-Praia”, ou “Venham mais Cinco”, ambas de Zeca. A meio da canção, depois de afirmar “isto é um canto e não um lamento”, decide mudar de assunto: textualmente não se altera uma linha, mas o ritmo acelera e acrescenta bateria e flauta, tornando-se a canção um protótipo do que se tornaria a produção da música portuguesa na década seguinte. Também em “Os Conquistadores” são avançados interessantes detalhes sónicos que, creio, são da lavra de Fausto, pelo muito que têm em comum com o seu “Por Este Rio Acima”, incluindo um poderoso solo de violino e o som dos marinheiros a trabalhar. Esta canção tem ainda o mérito de nos mostrar Sérgio Godinho spitting bars sobre a crueldade da colonização portuguesa. 


Camões era santo padroeiro da resistência, como as suas Rimas já o haviam sido sob a espanhola dinastia: “do mal ficam as mágoas na lembrança”, em 1971, cantado por José Mário Branco; três anos antes, José Afonso já se tinha agarrado ao poeta: “aquela cativa / que me tem cativo”, em “Endechas a bárbara escrava ”. De facto, serve o poeta “a retórica a frio / numa métrica de ferro” a todos quantos precisem da disciplina e da força sibilina, insinuante (sensual, já agora) da nossa língua na canção. Servi-me de uma citação de B Fachada, a propósito, outro fã d’”Os Discos do Sérgio Godinho”.  


De Camões para Aleixo, poeta popular, nas “Quatro Quadras Soltas”: viram fados viram viras / viram canções de revolta / encontram bons amigos / em mais que uma quadra solta; e acompanhados por uma filarmónica, juntaram-se amigos, o Adriano Correia de Oliveira, o Fausto e o Zeca Afonso para cantar, cada um, uma dessas quadras soltas. Pedro Mafama, por exemplo, não negaria esta marcha. Num título como “Arranja-me um emprego” é notável a clareza do pedido, e simples de entendimento são os versos: “Greves era só das seis e meia às sete / À frente do cassetete”. Mas como a realidade não cede assim tão fácil ao catalogar, como o álbum é de transição, não espantamos encontrar o espírito de Camões em versos como “Que é frágil o pano/que veste as peles do desengano/que nos empurra em novo oceano”.


Em setenta e nove, a sociedade de espectáculo já tinha aberto as suas portas no luso rectângulo, as derrotas da revolução afogadas em Cergal e Super Bock (“ainda bem que é para breve o festival / ainda bem que amanha é o ciclorama / o campeonato do mundo / no primeiro programa”), canta Zeca em “A Acupunctura em Odemira”, do Enquanto há força, mas o doce canto das sereias não era tão forte que o real não tivesse sido já substituído pela imitação: em “Espectáculo”, todo o simulacro é cruzado com o seu valor autêntico: o futebol, o music-hall, a televisão (“a fazer publicidade / mas desta vez da verdade / mas desta vez da alegria”).

 

Ouçam a primeira versão, de 1978, da música cantada por Sheila, a versão do próprio, em Campolide, e a versão que ele fez com os Clã em Afinidades: música definitiva, generosa ao ponto de ser reapropriada com dividendos. Procurem, como velhas amigas, frases como “o golo que eu fizer / ficará sempre na rede / a libertar-nos da sede” ou “e que os teus olhos os uses / como quem usa um farol”, reflectindo que sede ou luz estas. Não vos roubaria o vosso tempo assim a descrevendo se não achasse que esta música é um tesouro imaterial da nação. Material até, se a ouvirem num concerto; e ela tem sido tocada. Material até, se a cantarem por aí: ou não seremos nós sujeitos capazes de levar o espectáculo à cena?


História de camaradagem (“é um sonho que acordado / vale bem quem ele sonha”), de encontros com amores esquivos, de revoltas que não incendiaram a avenida, “Lá em Baixo”, a mais misteriosa das canções que ouvira no tal concerto e que desconhecia, é uma balada melancólica de outro tempo e de outro local, provavelmente Paris, julgando pelo acordeão, flauta e contrabaixo, que doces, vão pintando o mistério e o arrebatamento. Coisa agradável, dizia, estarmos dentro do desconhecido, se ele nos ensina: “Toda a gente passou horas/ em que andou desencontrado/ Como à espera do comboio/ Na paragem do autocarro”.


Sérgio Godinho tem uma sensibilidade pop mais apurada que os restantes membros da sua confraria, deixando que na sua música influam as estruturas e os métodos dos anglo-saxónicos, como os Stones ou os Beatles, dos franceses, dos brasileiros. O próprio criou o programa “Caríssimas 40 Canções”, disponível online, onde conversa com Henrique Amaro e António Macedo acerca de quarenta canções que o terão marcado: aula de música, serviço público, espectáculo, Fernando Mendes dixit.

 




Francisco Fernandes


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