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A encenação sonora d’As Cantigas do Maio, por José Mário Branco

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O texto que aqui apresento surge como uma síntese de um trabalho mais extenso desenvolvido no âmbito do meu mestrado, em Musicologia Histórica. O trabalho final teve como objetivo explorar a canção de intervenção portuguesa, através de uma figura em concreto: José Mário Branco – um artista riquíssimo, que muito me impressionou no modo como concebe a obra de arte. Neste artigo, irei reduzir a carreira deste completo artista ao seu trabalho de direção musical no Cantigas de Maio, álbum de José Afonso.

José Afonso e José Mário tinham-se conhecido em 1969 em Paris. Quando José Afonso traz consigo para Lisboa, para ser gravada, a cassete de Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, nasce uma frutuosa relação de amizade, que resulta também em canções extraordinárias. José Niza, nos pequenos textos que acompanham o álbum Cantigas do Maio, escreve:


“Cantigas do Maio, gravado em 1971, é para mim o melhor disco de José Afonso. Por um conjunto de excelentes razões, mas, sobretudo, porque José Mário Branco, autor dos arranjos e director musical de gravação, fez um trabalho genial e inovador na encenação musical das canções deste disco.”


Conforme desenvolvi no trabalho, Cantigas do Maio foi gravado no final de 1971 no Chateau d’Herouville, um palacete do século XVIII que fora transformado em estúdio, dotado de equipamento de grande qualidade (que, inclusivamente, chamou posteriormente vozes como as dos Pink Floyd, Elton John ou David Bowie). José Mário Branco conhecia o estúdio, pois já tinha gravado uns meses antes Mudam-se Os Tempos Mudam-se As Vontades. Neste mesmo estúdio, um pouco mais tarde, foi também gravado Os sobreviventes, de Sérgio Godinho. José Mário Branco esteve presente na produção e edição de todos eles. Mas voltemos ao Cantigas do Maio e ao trabalho de direção musical de José Mário. Este relembra como, tal e qual como um encenador, tinha de ouvir o disco mentalmente antes de este ser gravado, pois a própria natureza do trabalho assim o exigia: a criação da encenação sonora – termo usado por José Mário Branco para definir o modo como ele recria um ambiente sonoro para cada canção – precisava desse espaço mental. Ao referir-se ao seu papel de direção musical no Cantigas do Maio, o cantautor diz então ao próprio Zeca: “não estou a fazer arranjos, estou a fazer encenações sonoras (...). Eu tenho que criar um ambiente sonoro tal que a canção passe para lá com aquela energia, aquelas emoções que têm quando vais para o palco e cantas aquilo. ”[1] Ao criar um disco, José Mário queria transmitir “aquele fluxo emocional que é uma espécie de recriação da canção em cada circunstância”[2]. Este artista procurava criar algo novo, uma atmosfera própria para cada música, para que esta existisse por si própria. O seu gosto pelo teatro pode ver-se claramente neste trabalho de encenação – ao criar um estado de espírito para a canção, como se estivesse a dar-lhe uma forma, tal e qual como uma encenação torna uma peça singular. Por outro lado, os seus conhecimentos de música erudita permitiram-lhe, eventualmente, criar um ambiente mais rico, mais diversificado, por este ter sido exposto a múltiplas influências aquando da sua juventude. Deste modo, é visível quando José Mário Branco toca em algum álbum: existe um som para lá da canção, uma envolvência como aquela que uma peça de teatro ou um filme tantas vezes conseguem transmitir.


José Mário Branco conseguiu, sem dúvida, passar para Cantigas do Maio um determinado ambiente sonoro. O álbum começa, e somos inseridos nos instantes anteriores à gravação da canção propriamente dita: ouvem-se vozes (“Un, deux trois”...) e os instrumentos encontram-se naquele quase tocar, um último dedilhar antes de entrar. Inicia-se a canção. “Oh, Zé Mário, agora não se ouve, pá”. Recomeça-se: “Un, deux trois” – e, de repente, já estamos envolvidos no “Senhor Arcanjo”. Está criada a atmosfera da música, como se estivéssemos numa sala de teatro, naqueles instantes em que nos instalamos no lugar. À medida que a música avança, mais imersos ficamos na narrativa sonora. O álbum segue-se com a canção que lhe deu título. O simples acompanhamento de guitarra dialoga com um triste acordeão (tocado pelo próprio José Mário Branco), que dobra a melodia à terceira, em determinados momentos, sobre a desgraça que a letra do refrão popular faz menção: a possibilidade de um filho morrer antes da sua própria mãe, por ir para a guerra. “Milho Verde”, de novo sobre uma trova tradicional, tem um arranjo por completo de José Mário Branco. Esta música contrasta com todas as outras. A percussão, a voz de Zeca, por vezes dobrada à terceira, fazem a música. É como se a música fosse mantida no seu ambiente original, e José Mário passasse para o disco esta energia do povo a cantar – apenas com o apoio da percussão, que até no corpo se pode reproduzir.A canção que se segue, “Cantar Alentejano”, é, talvez, das canções mais tristes que alguma vez foi escrita. Um choro grita pela injustiça do sistema salazarista, que mata, à queima-roupa, em 1954, Catarina Eufémia, uma jovem alentejana. José Mário relembra, num texto para o Observatório da Canção de Protesto, como foi duro gravar esta canção: “A alma dele – percebi depois – estava toda no Alentejo, nos olhos de Catarina Eufémia”. Mais tarde, quando já não podiam gravar mais nada, José Afonso vai para o campo “ver as vacas”, como disse... Passadas umas horas, volta e, com sua voz “tensa e cristalina”, [3] “no meio do estúdio, sozinho e às escuras, cantou. Uma só vez. Essa que está no disco.”[4] Outro momento com uma clara narrativa sonora é, sem dúvida, “Grândola, Vila Morena”. A melodia, influenciada pelos cantares alentejanos, é caracterizada, uma vez mais, por não ter acompanhamento instrumental, para precisamente evocar este cantar coletivo, simples e no seu contexto. Apenas são adicionados os passos na gravilha, “como quando os alentejanos cantam pelas ruas das vilas e das aldeias, que é arrastando os pés, balançando, caminhando ao som do ritmo que a própria melodia sugere”[5]. “Maio Maduro Maio”, a faixa seguinte, é uma dança entre o baixo, o trompete, a flauta transversal e o coro, sobre a ideia de o mês de maio estar maduro, estar pronto para contestar. Uma vez mais, maio é referenciado no disco, criando uma ponte entre as várias faixas por ser o mês da primavera, da fecundidade – não nos esqueçamos que a própria ideia de maiêutica (com a mesma raiz da palavra “maio”) socrática significa “parir/dar à luz conhecimento”, quase como se procurasse dar à luz um novo período histórico, em liberdade. Por outro lado, o mês inicia-se com uma luta que tinha sido suprimida na época – o dia do trabalhador. “Mulher da Erva”, a música seguinte, é também uma narrativa, no seu sentido mais estrito, pois a sua poesia conta a história de uma mulher alentejana cuja tarefa era vender erva para o gado – tarefa que foi desaparecendo com uma agricultura cada vez mais automatizada. Uma primeira estrofe, quase como mote, a capella, é seguida pelo acompanhamento de guitarra. Segue-se a “Ronda das Mafarricas”, com uma instrumentação simples, mas condizente com a poesia do pintor António Quadros. O disco fecha com o “Coro da Primavera” – uma vez mais com esta da ideia da estação do ano associada ao início da revolução (mal se sabia que esta ia acontecer, de facto, na Primavera!). A música começa com uma simples percussão, baixo e flauta a fazer o tema (mais à frente em uníssono com um trompete). A voz entra, acompanhada pela guitarra. Camada por camada, a instrumentação complexifica-se (sendo cada estrofe cada vez mais densa), culminando no refrão luminoso e confiante, que nos aquece pela sua poesia e a sua sonoridade maior: “Ergue-te ó Sol de Verão / Somos nós os teus cantores / Da matinal canção / Ouvem-se já os rumores / Ouvem-se já os clamores / Ouvem-se já os tambores” – mais explícito não podia ser: Zeca e os seus companheiros lançam um tom de esperança, pois a Revolução de Abril iniciava-se, lentamente.


[1] Traz Outro Amigo Também, documentário RTP, 18’22’’ [2] Branco, José Mário in Galopim, Nuno. 5 de setembro 2021. A Revolução de 1971. Expresso. Lisboa. [3] Branco Mário, José. 2009. A oficina da canção (III): no canto não há neutralidade. Passa Palavra. In http://passapalavra.info/2009/08/11470/ [4] Branco, José Mário. Chamava-se Catarina. Observatório da Canção de Protesto in https://ocprotesto.org/cantar-alentejano-jose-mario-branco/ [5] Branco, José Mário in Galopim, Nuno. 5 de setembro 2021. A Revolução de 1971. Expresso. Lisboa.


Sara Maia








Palavras-chave: música de intervenção; encenação sonora; direção musical





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