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Cinco fragmentos para a Música Moderna Portuguesa (MMP)

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I

“A entrada de um som novo… de uma música moderna” (Zé Pedro). A MMP foi, diz Ricardo Camacho, “um rótulo que se aplicou aos grupos que se queriam demarcar do… boom do rock português (BRP)” com uma “baliza temporal entre o “Chico Fininho” do Rui Veloso e um disco dos Pop Dell’Arte… [como] as fronteiras que delimitam esta divisão” (Miguel Francisco Cadete).


II

Situado no Rego, em Lisboa, o Rock Rendez-Vous estava aberto desde 1980, e ao lançar em 1984 o Concurso de Música Moderna tornou-se o ponto de partida para muitas carreiras: “Se não existisse uma sala com aquelas características, era pouco provável que a maior parte das bandas tivesse conseguido chamar a atenção de uma editora”, diz Ricardo Camacho. O RRV “definia, afastando-a [a MMP], do que era o rock português, e era nesse sentido que premiava quer nos concursos de música moderna quer nos de originalidade, artistas com atitude não mainstream”.


É no RRV que ganha visibilidade, ao vencer a primeira edição do concurso, uma banda nascida pouco tempo antes em Cascais, os Mler Ife Dada. Os Pop Dell’Arte de João Peste vencem em 1985 o prémio de Originalidade do RVV, e em 1986, Peste cria a editora Ama Romanta.


Em 1986, são os Mão Morta a vencer esse prémio. O prémio de Música Moderna foi sendo esquecido depois da vitória, na segunda edição, dos THC sobre os Pop Dell’Arte, e a atenção começa a voltar-se somente para o prémio de Originalidade. Diz Afonso Luxúria Canibal: “esse golpe [a vitória dos THC] não foi suficiente para abalar o prestígio do concurso ou do rótulo [da MMP]”.


III

Num poema que não começa nem acaba, onde cada imagem é trocada (isto é, vendida e comprada) por uma outra que só aproximadamente lhe vale, “Alfama” dos Mler Ife Dada, no álbum Coisas Que Fascinam, editado em 1987, seria fado. E é? Tem “tudo o que a gente sente que é fado”, diz Anabela Duarte, vocalista. “Mas aquilo não é um fado como os que costumávamos ouvir…”. A letra é um afã de palavras que, mais ou menos surrealistas, definem este bairro (“Alfama / côdea de alfafa / e gente de fama / que cai na galhofa / no pátio da esquina / da feira da ladra / de cacos picantes / e contas correntes / de tretas e pintas / de gente com laca”); a instrumentação é escassa, não se tratando do costumeiro acompanhamento à guitarra, reduzida a traçar o esqueleto da melodia. Pobres puristas – eis aqui uma canção que, na lírica, está longínqua do arquétipo do fado, mas cantada com tal melisma, com um sentimento dolorosamente correcto, que se impõe como ele.


“Fúria sinto em mim / Flechas sinto em mim / Mágoa sinto em mim / Risos sinto em mim / Força sinto em mim”: não se fixa precisamente no fado Anabela Duarte; em “Sinto em Mim” já se deslocou para o tango e cria uma atmosfera de ânsia mortal, ou, em “Valete (De Copas)”, para o soul, ou a city-pop: “Meu querido amigo, ai como estás bem / Ai como eu quero estar mal”.  

 

 IV

Procuram outras toponímias de Lisboa? Talvez a “Porta do Sol”? Tem esse nome uma música dos Sétima Legião, do álbum A Um Deus Desconhecido, de 1984. A banda surgira dois anos antes, ainda sob os auspícios do BRP. Os Sétima Legião começaram em inglês, mas um certo (e omnipresente) Miguel Esteves Cardoso pô-los a cantar na língua materna, para isso tendo escrito para a banda o single “Glória”. Assinaram depois pela Fundação Atlântida, que MEC tinha fundado, entre outros, com Pedro Ayres Magalhães, dos Corpo Diplomático e Heróis do Mar.

 

A “Porta do Sol” é um objecto de uma beleza lancinante, reflexo da afirmação de Camacho da pureza do som, construída apenas com uma drum machine e um teclado a acompanhar a voz gutural de Pedro Oliveira, num desespero calmo (“Estes olhos que não quero ver / Mas à noite não posso esquecer / Desce o véu / Arde a catedral / Anjo negro no céu / Lá vem o vendaval”), e ao contrário do que aconteceu com tanta música feita nesta altura, ela manteve a sua frescura e actualidade: vemos agora bandas com recursos incomparavelmente superiores aos que a Sétima Legião tinha, tentarem reduzir o seu som só ao osso e a chegar a sonoridades próximas desta.


Ricardo Camacho, que produziu A Um Deus Desconhecido em dois dias, refere que a escassez de tempo e meios conduziu “a um som muito depurado, muito reduzido ao que era fundamental”. Espírito do pós-punk (os Joy Division, de quem, já agora, MEC foi grande arauto, ou os New Order, sempre citados) com a adição muito característica de gaita de foles, que seria profusamente utilizada pela banda. Verdadeiro college rock para um país que não teve essa cultura, no majestoso “O canto e o gelo”, ou em “Com o vento”, com a sua guitarra jangly. O jangle, estilo de música que faz referência à “jingle jangle morning”, letra da música de Bob Dylan “Mr. Tambourine Man”, depois electrizada pelos Byrds, e que se caracteriza por riffs agudos, frequentemente tocados em guitarras de doze cordas, foi recuperado pelos R.E.M. e pelos Smiths nesta década, e as bandas portuguesas não ficaram indiferentes a esses desenvolvimentos, tendo-os adoptado nas suas músicas.


V

Acervo dessa editora é o disco (duplo) Ama Romanta Sempre, que foi lançado em 1999 e é verdadeiro “embarrassment of riches”. A primeira canção, “Sonhos Pop” é do dono do pedaço, o supracitado Peste em música de cabaret: “não quero mais morrer / não quero mais sofrer / arriba avanti / pop dell’arte”.

 

O que se segue são pérolas caídas no esquecimento, como a “Roda” de Anamar, outro exemplo da confluência do fado na MMP, através da guitarra, mas também de uma instrumentação tradicional, como nos bombos; o jangle dos Feelies ou dos Another Sunny Day em “Lá Féria” dos Essa Entente, também assíduos do RRV, ou o “Hino À Nossa Luta” dos Linha Geral, que consegue construir um ambiente completamente mortífero, etéreo, sem que seja possível entender grande parte das palavras. E porquê não referir também o muito Eno “We Build Cities” dos Croix Sainte, pretendentes próximos ao prémio da primeira edição de música moderna?


Zé Pedro elogia João Peste por “ter fundado a Ama Romanta e contratado todas essas bandas novas que se calhar não teriam possibilidade de ser editadas.” E o que lhe responde João Peste (enfim, não particularmente a Zé Pedro, mas ao mundo), em “Groovy Noise Dada Rock”, de 1989?


“I want to be «Be Bop a Lula» / I want to be so cool / I want to be so cool / I want your love / I want your sex / I want your money money money money money money ma”.




Francisco Fernandes


Todas as citações aqui presentes provêm do documentário “A Arte Eléctrica em Portugal”, episódio 5.

 




 

 

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