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The Feelies – O rapaz do lado está metido em coisas importantes

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Os Feelies, banda de New Jersey, USA, basearam o seu primeiro álbum, Crazy Rhythms, de 1981, no seguinte pressuposto: dar às pessoas a possibilidade de terem, na sua casa e sempre que quiserem, o momento que precede um moshpit num concerto.


Situemos o leitor – um concerto de rock será sempre uma mistura de melodia e secção rítmica, e as músicas compostas de várias secções; normalmente é exposto o tema da canção no início e durante o desenvolvimento pode acontecer que só a secção rítmica participe – os instrumentos que tecem a melodia esperam pela altura certa para recapitular o tema. Esse instante é uma avalanche de serotonina (“o tema, cuja audição é o motivo de estarmos neste concerto, voltou!”), e os espectadores, para gerir esse pico de actividade cerebral, atiram-se uns contra os outros. As bandas, sendo macacas, sabem disto e tentam também aumentar a festa: para sinalizar a iminência do tema fazem com que a secção rítmica toque em drone, ou seja, um motivo simples repetido indefinidamente. Cá em baixo, quem vê o concerto exerce uma força tipo mola – todos se afastam de um círculo, que deixam livre (o pit), apertando-se à sua volta. É esta energia potencial (denso na periferia, vago no centro) que vai ser trocada por energia cinética (o mosh). Para manter o moshpit desocupado é preciso aplicar constantemente uma força que impeça as partículas de voltar ao repouso; esta força é dada pela secção rítmica.


No caso dos Feelies, a banda não parece minimamente interessada a voltar ao tema, mas apenas em manter o drone. Em “Forces At Work”, é a propulsão de um bombo-bombo-tambor que avança, ininterrupta, durante toda a música, não se transformando nunca num momento de dissolução, levando-nos para a histeria mais completa. Também “Everybody Has Something To Hide (Except Me And My Monkey)”, dos Beatles, recebe o mesmo tratamento, com a agradável adição de muito cowbell, e um som de chicote com tanto filtro que poderia ser o disparo de uma nave especial. Quando esta passagem se repete o som do chicote perde o eco espacial; ficamos a pensar nas implicações narrativas (poucas) da sonoplastia.


Além de nunca cederem à tentação de recapitular o tema, outra maneira dos Feelies nos colocarem predispostos à ansiedade são as introduções às canções: várias estendem-se para lá de um minuto com pouco mais que o ressoar suave de guitarras, sons de batimentos cardíacos e baterias à Maureen Tucker, dos Velvet Underground. Estes momentos colocam algumas interrogações sobre o seu valor – que DJ as passaria na discoteca ou na rádio? Serão feitos para ouvir em casa, conceptuais? Este disco ainda não teve, para mim, a proof of the pudding – oiço-o em casa, no trabalho, no carro. Mas ele só mostrará as suas garras quando as discotecas o passarem, brilhando quarenta anos depois do seu primeiro clarão – só aí os loucos ritmos serão tornados carne – antes não. A sua maior bondade enquanto mercadoria é para já insuficiente; queremos ver como se comporta fora da protecção das nossas casas.


Se os radialistas temem o efeito que adicionar estas canções à sua playlist pode ter nos rankings sublinho que a música “Fa Cé-La” podia ter sido feito ontem e ser agora um hit capacíssimo – se estivermos dispostos a trocar presentes e passados, então a guitarra dir-se-ia tirada de uma música de Strokes e um “everything is all right!” tirado do caderno de Lou Reed; também a bateria soa muito bem e a música é no total um objecto muito bem conseguido.


Fazendo estranhas parelhas, “Raised Eyebrows” junta um estilo mais popularucho, tipo música de slow com uma bateria demasiado alta na mistura. Quando a canção estoira, ligando o turbo, vemos que é deste solo de guitarra lindo e emocionante que os Galaxie 500- queridos do indie- foram buscar toda a sua carreira. Que canção sonhadora, “ whimsical”!


Na última faixa do disco, “Crazy Rhythms”, a secção rítmica volta a levar a música a dançar, à moda dos Talking Heads e da “12XU” dos Wire, embora os Feelies (sufixo em -ies) nunca sejam tão agressivos como essas bandas, assemelhando-se mais a uma panela de pressão a largar fumo – de novo a abrir o moshpit, de novo a ansiedade controlada, trabalhando aqui sob um conceito enaltecedor (“work real hard”).


Quando, por exemplo, decidem fazer uma versão ao vivo de “I Wanna Sleep In Your Arms”, de Jonathan Richman, uma das primeiras coisas que dizem é que não podem relaxar, e isso nota-se na maneira como tocam, aqui comprometidos com uma velocidade «ramónica», sem perder um segundo na ternura louca de Richman. Tal como Richman (“the king of them all”, como diriam os Cave Story), os Feelies estão desgostosos do coração e influíram no disco, a paredes meias com este ritmo imparável, canções de grande dramatismo como em “Loveless Love” (“is not enough”) ou em “Original Love” (“just a compromise… why make it a problem?”ou “your voice raised in anger… you don’t know what you’re after”). Nesta última música, o som do solo é moderno e apesar da carga emocional, os breaks são surpreendentemente dançáveis.


Os Feelies, portanto, estão metidos em “bigger things”, como os próprios são os primeiros a admitir: estão a arrumar os conceitos do alternativo dos anos 60 e 70 (o contraste letargia/histeria dos Velvet, o romantismo de Jonathan Richman, as escalas e arpejos de Television, e a ansiedade de Nova Iorque em geral e dos Talking Heads em particular) num todo consistente, excitante, só deles e ainda pouco reproduzido quarenta anos vindos a esta parte.


O conceito de transe e da espera pela recapitulação do tema estão presentes em toda a pop e electrónica desde há muito tempo. O público está mais do que nunca pronto para estas construções sensíveis, mas imponentes. As discotecas, um pouco por todo o mundo, estão a ceder ao charme destas estruturas e a passá-las nas suas pistas – quem tem feito a proof of the pudding tem gostado.




Francisco Fernandes

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