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E não sobrou ninguém

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Acompanhada por um videoclip que nos relembra os tempos confinados que atravessamos – como que uma realidade de noites de insónias, imagine-se –, a música composta e interpretada por Linda Martini, cujo título remete a um poema de Martin Niemöller, conta-nos sobre uma outra faceta da atualidade – uma bastante familiar.

A banda de rock portuguesa, criada em 2003, gravou em Lisboa no passado mês de janeiro – com o lançamento da mesma nas redes sociais em fevereiro – a sua mais recente canção: “E Não Sobrou Ninguém”.

Trata-se de uma canção que, apesar do relevo instrumental – de que talvez se realcem as guitarras pelos seus destaques solistas, suportados pelo baixo e pela bateria –, mantém o foco na voz e na narrativa que conta. Os Linda Martini trazem-nos, assim, uma reflexão em forma cantada, e tocada, sobre acontecimentos e situações que se repetem diariamente – não por isso perdendo o impacto a cada nova ocorrência vivida, para cada um que as sente.

Acontecimentos ignorados por uns, acompanhados por aqueles a riso ou não levados a sério por tantos outros, tal como nos contam André Henriques, Cláudia Guerreiro, Hélio Morais e Pedro Geraldes. Isto, se não nos encontrarmos entre aqueles submetidos ao “braço em riste”. Linda Martini chamam a atenção para a compactuação banal de «atrocidades, injustiças, preconceito e discriminação para com seres humanos».

Quase parece parte de uma piada: “Um cigano, um do leste e um zuca / entram num bar com ar aflito”.

Niemöller fala sobre a apatia de quem, não se vendo ameaçado, não interfere e é indiferente ao ataque aos outros. Várias versões do texto existem, não havendo nenhuma oficial. Segundo a Enciclopédia do Holocausto (online), tal atribui-se por este falar espontaneamente e em diversos momentos – quiçá pela simples e crua necessidade de o fazer? –, criando deste modo várias versões da mesma essência: “Primeiro levaram os comunistas / mas não me importei com isso / eu não era comunista”. Aos comunistas seguiram-se os sociais-democratas, os judeus, os sindicalistas e, por fim, os católicos. «Quando vierem por ti amanhã», dizem Linda Martini, «vais gritar “Ai mamã, ai mamã”», inutilmente. Após tamanho silêncio mantido, “não sobrou ninguém” para te acudir, tal como previa o poeta alemão.

Um império de indiferença e “um império de ódio” que parecem continuar indiferentes à passagem do tempo.

“Tu pagas impostos, não é? / Só queres ser feliz”, será esta uma referência a José Mário Branco? Existem semelhanças entre fevereiro de 1979 e fevereiro de 2021? Existem semelhanças na reação e no comportamento das pessoas em duas realidades separadas por cerca de 40 anos?

Com o solo instrumental mais longo desta canção, em que se destaca a proeminência da guitarra, é introduzida uma secção algo contrastante do interpretado até ao momento. Caracterizada por uma ambiência mais grave, uma métrica mais acentuada, apoiada nos acordes instrumentais, e pela preparação de um clímax paradoxalmente anticlimático-interrompido, com o último verso cantado acapella.

As últimas estrofes – enquadradas na mencionada secção –, estão (musical e) narrativamente conectadas entre si. Todavia, opõem-se. E apresentam uma narrativa algo distinta do até então: “A minha pele” é retratada por materiais transparentes, porém, também retratada por mágoa. E como se define a mágoa em tom? Qual o papel do “eu” nestas facetas da realidade? Que tenho “eu” feito, em prol ou contra?

“A tua pele é cor de pó / A tua pele é cor de mofo”. Será que poderemos encontrar semelhanças do Pó enaltecido por Walter Benjamin ou na Beleza da Ruína, de Georg Simmel, como condição para o novo e para a mudança? «Será que o mofo e o pó podem ser encarados como toda a História de discriminação racial que muitos enduram? Como que resquícios do passado que não desaparecem e sempre retornam?» - diz-me, em conversa, Rosac. Ou antes, encaminham-nos Linda Martini com “um tom qualquer” para a apatia e indiferença para com o “outro”, já presentes na restante lírica?

“Eu nem te oiço” é a forma como termina esta canção. Destoa. Quando falado do “outro”, até agora e à semelhança da realidade, apenas a aparência deste é descrita, ou as suas ascendências percetíveis por meio desta mesma aparência, ou ainda os dizeres que circulam sobre este. Mas será que chegamos sequer a ouvir a sua voz? Será que ouvimos o que o outro tem a dizer? Sabemos o que o define? Ou definimo-lo por tudo aquilo e somente aquilo que se cola ao nosso olhar em meio segundo, baseado nos maiores estereótipos criados antes mesmo, porventura, da existência de este “eu” e de este “outro”?

Linda Martini declaram sobre esta canção: “É uma reflexão sobre eventos recentes e sobre séculos de atrocidades, injustiça, preconceito e discriminação para com seres humanos que não se enquadram na etnia, género, religião, posição social ou comportamento sexual dominante. A cor da nossa pele, com quem nos deitamos, o que temos entre as pernas, que língua falamos, em que país nascemos, a que Deus rezamos, quanto ganhamos por mês. Nada disto nos define, nada disto nos faz melhores pessoas.”

Mariana Rodrigues

Artista: Linda Martini

Nome da faixa: "E não sobrou ninguém" (single)

Gravação: Lisboa, janeiro de 2021

Lançamento: fevereiro de 2021, em formato digital

Ed: Sony Music


Palavras-chave: música portuguesa; rock; música de intervenção.

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