boygenius: Supergrupo e SuperEP
boygenius é um projeto colaborativo que conta com a participação de Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers, nascendo no ano de 2018. Este supergrupo constituído por 3 grandes nomes do circuito indie apresenta uma formação quase acidental: começou por um respeito mútuo pela arte umas das outras, com participações conjuntas em tournées, a par de uma profunda amizade que eventualmente se viu canalizada num projeto. Gravado em apenas 4 dias e com uma equipa de apoio quase exclusivamente feminina, este EP é uma afronta à constante comparação entre as mulheres na indústria musical, mostrando que as artistas não precisam de estar em oposição e que se conseguem unir num mesmo esforço, que as eleva mutuamente.
O nome da banda nasce desta frustração partilhada da frequente comparação que havia pelo simples facto de serem mulheres com o mesmo género musical, apesar de não apresentarem propriamente um estilo semelhante. A escolha de uma equipa largamente feminina foi um passo determinante na conceção deste projeto e Julien, Lucy e Phoebe afirmam que sentiram um peso levantado dos seus ombros por não sentirem a obrigação de terem de se explicar constantemente e por se poderem relacionar livremente. Começando inicialmente como uma piada, o nome “boygenius” fazia alusão ao arquétipo do “génio masculino”, génio este que nunca pensou ser nada menos que brilhante e que apresenta as suas “ideias magníficas” abertamente. As mulheres desta indústria apresentam uma experiência completamente oposta à dos artistas masculinos, ensinadas a “ouvir em vez de falar”, como explica Phoebe Bridgers. “boygenius” surge assim como uma crítica ao papel do homem na indústria e de como as mulheres são perfeitamente capazes de sair do molde passivo em que as colocam, onde as suas ideias podem também ter este estatuto brilhante e ser dignas da comparação a génio.
Este EP conta com 6 faixas, cada uma ilustrando diferentes facetas de cada artista, numa mistura elegante e natural entre os seus variados estilos. Inicia-se com a canção “Bite the Hand”, que abre com a voz de Lucy num tom longínquo e que rapidamente é acompanhado por harmonizações de Julien e Phoebe. Esta canção aborda a relação desigual entre o artista e o público, onde os fãs esperam uma entrega completa de corpo e alma do intérprete à sua audiência, negligenciando por completo a sua faceta humana. As três cantoras harmonizam as palavras “Here´s the best part, distilled for you / But you want what I can’t give to you”, falando sobre o esforço que o público faz para apreender todas as facetas do artista, tanto a profissional quanto a pessoal, pouco se importando se essa entrega tão completa como querem ocorre ou não à custa da sanidade do intérprete. A música ganha o nome da expressão “biting the hand that feeds you”, que significa magoar alguém de quem dependemos e no contexto desta canção significa a recusa de oferecer ao público tudo aquilo que ele exige em prol da preservação da essência e identidade da pessoa, ainda que isso possa desiludir os seus fãs. Esta canção é claramente marcada pela presença de Lucy, cuja voz se destaca sempre mais, onde também o instrumental é profundamente “Lucy”, tanto que poderia ser algo que ouviríamos num dos seus álbuns a solo. Os acordes graves da guitarra elétrica e a lenta construção da percussão e harmonias suaves, mas poderosas, fazem estremecer algo dentro de nós e começamos a experiência deste EP num bom tom.
A segunda canção é “Me & My Dog” e tem a marca de Phoebe Bridgers. Fala sobre como uma relação muitas vezes produz em nós tais sentimentos de euforia que parecem capazes de eclipsar qualquer tristeza que possamos sentir; quando a magia desaparece, percebemos que esta relação não cura, mas sim distrai-nos dos aspetos negativos da vida, sendo que eles nunca desapareceram, apenas ficaram adormecidos. O refrão é longo e termina com os versos “I wanna hear one song without thinking of you / I wish I was on a spaceship / Just me and my dog and an impossible view”, expressando o sentimento de alívio e paz após a relação, de querer esquecer o impacto que a outra pessoa teve em nós e de querer viver num estado de sonho pacífico, acompanhado pelo único fiel companheiro, o seu cão. Esta música é mais marcada por um estilo folk, típico de Phoebe, que privilegia harmonias etéreas e um lirismo pungente, com a guitarra em posição de destaque e apontamentos casuais do banjo. Os últimos dois versos da canção “I dream about it/ And I wake up falling” contam com uma linha melódica poderosa pela voz de Phoebe, mas que foi deixada para o pano de fundo, num suspiro, como algo que ouvimos ao longe enquanto sonhamos. Esta é provavelmente a música mais poderosa do álbum em atuações ao vivo, particularmente por estes dois versos em específico, com a performance vocal tão forte e presente de Phoebe Bridgers.
Logo a seguir, temos “Souvenir”, uma canção mais experimental e com mais nuances, notando-se desde logo a ausência de um refrão, sendo apenas constituída por 3 estrofes, uma para cada membro, abrindo com Julien, seguindo-se Phoebe e depois Lucy, terminando com uma pequena harmonização conjunta. A nuance desta canção está maioritariamente associada à letra, deixando bastante espaço para interpretação; na sua essência, a música aborda temáticas como a morte e a atração que o grupo parece ter por ela, assim como uma constante recorrência de pesadelos e questões de saúde mental e autoestima. Apesar de Julien ter destaque apenas na primeira estrofe, o tipo de construção da canção e, em especial, o tipo de melodia, são profundamente característicos de Baker. Podemos ouvir Lucy a cantar “Work a midnight surgery / When you cut a hole into my skull / Do you hate what you see? / Like I do”, como exemplo da temática da falta de autoestima, tocando também um pouco no aspeto mais mórbido da canção. A linha melódica calma e grave embala-nos em conjunto com os acordes lentos da guitarra e age em contraste com o peso da morte e da tristeza da letra.
“Stay Down” é a quarta canção e mais uma vez uma criação de Julien Baker, com contribuições menores de Phoebe e Lucy nas vozes de apoio. Esta canção fala de trauma religioso e da depressão e ansiedade de Julien, com letra que recorre a metáforas inteligentes para ilustrar a situação e linhas melódicas que demonstram maravilhosamente as capacidades excecionais de Baker. Na segunda estrofe, Julien canta “I’m just in the back seat of my body / I’m just steering my life in a video game”, uma metáfora perfeita para os seus sentimentos de dissociação e descontrolo face à sua vida. Na terceira estrofe, a canção começa a ganhar corpo com a percussão e as harmonizações mais notórias do resto da banda, onde ouvimos os versos “Aren’t I the one constantly repenting for a difficult mind? / Push me down into the water like a sinner, hold me under / And I’ll never come up again” num “grito” desesperado por ajuda; após tantos anos a negligenciarem os seus sentimentos, Julien resigna-se ao rebaixamento que lhe fazem e pede que lhe deem um fim que uma vilã merece, acabando com o seu sofrimento. Toda a música apresenta imagens vívidas e uma história difícil de ouvir e ainda mais difícil de viver. Com o avançar da canção, percebemos que “stay down” se refere a “ficar debaixo de água” e desistir de tentar sair de uma situação que todos à sua volta consideram condenada.
A penúltima canção do álbum é “Salt in the Wound” e é talvez aquela em que o aspeto colaborativo deste projeto mais se nota. As três cantoras misturam-se brilhantemente quer em termos tímbricos quer em termos de oferecer os seus pontos musicais e líricos mais fortes: a canção foi primeiramente trazida para o estúdio por Lucy, mas notamos claras influências líricas de Julien nas temáticas religiosas que aparecem ao longo da canção e um tipo de linha melódica muito inspirado no estilo de Phoebe. “Salt in the Wound” provém de uma expressão que se refere a piorar uma situação já má e a primeira estrofe oferece-nos uma série de metáforas com comida que perfeitamente descrevem os sentimentos que surgem quando nos encontramos numa relação com alguém que gosta de nos fazer sofrer; Lucy canta “You put salt in the wound / And a kiss on my cheek / You butter me up / And you sit down to eat”. O refrão fala-nos mais desta relação que nos sufoca e que nos ameaça destruir: “Trick after trick, I make the magic / And you unrelentingly ask for the secret”. Uma das metáforas religiosas mais poderosas, e aquilo que realmente fecha o ciclo de abuso nesta canção, vem nos versos “I’m gnashing my teeth / Like a child of Cain / If this is a prison I’m willing to buy my own chain”, que vêm na sequência de um sentimento de recusa desta relação tóxica e de tentar procurar felicidade noutras experiências, sem que essa felicidade consiga ser reproduzida com sucesso; no final de contas, esta pessoa não se consegue obrigar a sair porque lhe é impossível de esquecer os bons momentos que teve. A voz de Lucy destaca-se como se nos tentasse atrair para o meio do oceano revolto, enquanto as vozes de Phoebe e Julien se encontram numa harmonia perfeita. A harmonização nesta canção é provavelmente a mais bem conseguida no álbum, sendo por vezes difícil de distinguir quem está a cantar qual parte, sobretudo no refrão, exatamente onde podemos encontrar a referência a magia. O instrumental é rock no seu essencial, com a guitarra a fazer riffs memoráveis e a percussão a agir num complemento perfeito.
Finalmente, o projeto termina com a canção “Ketchum, ID”, cujo nome provém da cidade Ketchum, estado de Idaho, nos Estados Unidos da América, que se mostra relevante na estrofe de Lucy, quando ela apela ao resto da banda para largarem o projeto e irem conviver em paz para a calma de Idaho. O EP termina assim com sentimentos de nostalgia, tristeza e falta de sentido de pertença, tudo embrulhado numa balada folk, somente com voz e guitarra. Assim que ouvimos os acordes iniciais e a voz de Phoebe, rapidamente percebemos que esta é uma das suas composições, mas a letra informa-nos de uma situação que é comum aos restantes membros: um sentimento de ver a vida parada enquanto estão na estrada em tournée e de não pertencerem a lado nenhum por não ficarem tempo suficiente para criarem raízes. Ouvimos falar de um amor solitário e de como é alienante manter relacionamentos com pessoas que não vemos por longos períodos de tempo. A última estrofe é despida e quase fantasmagórica, depois de termos passado os últimos 20 minutos a explorar tantos tópicos pessoais diferentes e parece mais que adequado que seja cantada à capela, como a assinalar que, depois de se terem despido emocionalmente até aqui, despem-se também dos instrumentos e deixam as suas vozes brilhar pela última vez. As harmonias do refrão são verdadeiramente belas e, evocando por completo o espírito do género folk, ouvimos as palavras finais do EP: “I am never anywhere / Anywhere I go / When I’m home, I’m never there / Long enough (to know)”.
Este EP é um exemplo magnífico daquela que devia ser uma colaboração mais frequente entre Julien, Lucy e Phoebe. As suas singularidades, que, à partida, pareciam um detrimento no êxito deste projeto, são o que garante o seu sucesso, com os seus estilos a juntarem-se organicamente numa colaboração memorável. O folk hipnotizante de Phoebe Bridgers, em conjunto com o rock emotivo de Lucy Dacus e o sentimentalismo poético de Julien Baker criam a tempestade musical perfeita, que nos traz ondas atrás de ondas de emoção, culminando num resultado verdadeiramente mágico e genial.
Patrícia Moreira
Título do álbum: boygenius Artistas: Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers Editora: Matador Records Ano: 2018 Produção: Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers
Palavras-chave: "indie rock"; "folk-rock".