“X-M@$”: um hino anti-Natal que não o é
A faixa “X-M@$” (“Christmas”), escrita, produzida e gravada em Londres por Corey Taylor, vocalista dos Slipknot e dos Stone Sour, trata-se, à primeira vista, de um single anti-Natal – mas será que é, de facto, isso que temos em mãos?
As origens do Natal e das tradições que lhe são inerentes na era em que vivemos – a troca de presentes, o tempo passado com a família, os símbolos e elementos que a esta época associamos – podem ser relacionadas não só com fatores climatéricos (o frio causa a neve e os tempos passados confortavelmente junto da lareira, enquanto que os pinheiros são das poucas árvores comuns que mantêm as folhas durante o Inverno, por aí fora…), mas também com histórias, lendas e mitos milenares. São Nicolau, por exemplo, um homem extremamente devoto e generoso que viveu na atual Turquia durante o século IV A.D., costumava fazer doações generosas aos mais desfavorecidos, em jeito de caridade. Tal tradição – a de oferecer presentes às crianças no seu dia onomástico (6 de dezembro) – viveu durante muitos anos nos países nórdicos, nos E.U.A e na Eurásia ortodoxa. Contudo, durante a Reforma da Igreja (cuja data de início formal está fixada no primeiro quartel do século XVI), Martinho Lutero, ao criar o seu próprio culto cristão, moveu esta tradição para o dia 25 de dezembro, de modo a concentrar a atenção e o propósito destes atos não num Santo, mas antes no nascimento de Jesus de Nazaré, característica essencial da doutrina Luterana.
Durante os séculos XIX e XX, vemos, paralelamente à ascensão e disseminação mundiais do sistema capitalista, o modo como esta tradição evoluiu: os presentes são oferecidos em maior quantidade (fazem-se listas, veja-se lá!), trocam-se produtos, há uma grande quantia monetária em movimento capaz de “virar do avesso” os maiores mercados internacionais, e megacampanhas publicitárias (em conjunto com símbolos e imagética da cultura popular – note-se o cruzamento entre a Coca-Cola e o Pai Natal) apelam a que o consumidor compre, compre, compre, de modo a que o produtor produza, produza, produza (ou é ao contrário?). Em suma, o Natal tornou-se escravo do capitalismo, mais uma ocasião cujo propósito, hoje, é radicalmente diferente do original: manter a máquina capitalista a funcionar, deixando em segundo plano o que, original e tradicionalmente (e ainda hoje, em certas comunidades muito devotas), se celebra na época natalícia. Sim, é certo, vendem-se presépios, pequenos objetos que representam com maior ou menor detalhe (e realismo histórico) o nascimento de Jesus; mas mesmo isso não será também um produto do capitalismo, nova prova de que tudo se vende e de que a roda não para desde que todos façamos a nossa parte?
À medida que tudo isto se passa, paródias a esta mentalidade e padrões de comportamento têm vindo a surgir em vários campos e formas de entretenimento popular: desde canções a novelas, não esquecendo filmes e poesias, muitos artistas e autores têm vindo a criticar o modo como a sociedade moderna encara o Natal. É neste contexto que surge o nosso herói, Corey Taylor, cínico misantropo de profissão (apenas quando usa a máscara dos Slipknot), autor de três New York Times Bestsellers, que se coloca na posição de alguém que odeia a época natalícia (o contrário de si mesmo, como, mais tarde, esclareceu em entrevistas). Este single de rock cómico, gravado por Taylor numa única tarde de novembro e lançado pela Roadrunner Records em dezembro de 2010, e cujas receitas foram doadas à The Teenage Cancer Trust, foi extremamente bem recebido por críticos, fãs e meios de comunicação, e é frequentemente tocado por Taylor num set acústico no contexto das suas tournées, musicais e literárias, a solo.
A linguagem é profundamente satírica, obscena, chocante e cómica, com o intuito de incorrer num comentário social (ou “crítica de costumes”) através de um vocabulário pouco sério, definitivamente nada intelectual ou elevado, e o vídeo desempenha também um papel muito importante nesse processo: com uma estética DIY, o videoclip que acompanha este single conta com inúmeras imagens stock e de domínio público retiradas da internet, combinadas com um uso de ecrã verde, CGI e pós-edição propositadamente amadores e, por vezes, até certo ponto, elementares e de pouca qualidade (contudo, como em tempos me disseram, “Nunca assumas que seja o que for que um grande artista fez foi por acaso”). Note-se ainda o modo como o vídeo está quase sempre em consonância com as imagens, cenários ou figuras que a música descreve, evoca ou sugere, integrando muitos elementos comuns (e outros incomuns, na medida em que são distorcidos) durante a época natalícia – afinal, este é um dos principais métodos para fazer comédia: isolar os elementos que constituem e melhor caracterizam o foco da sátira, para depois alterar o contexto e/ou forma em que aparecem (neste caso, vemos Pais Natais embriagados, árvores de Natal decadentes, um pequeno coro que canta temas de Natal enquanto é atingido por flechas, entre muitos outros exemplos).
Musical e sonoramente, elementos como o som de sinos e a melodia do refrão do tema “Jingle Bells”, tocado na guitarra-elétrica, colocam o ouvinte num ambiente profundamente natalício desde os primeiros segundos da faixa. Antes sequer do primeiro verso, Corey exclama “Ho-ho-ho!”, tosse profundamente e suspira “Jesus!” em jeito de interjeição blasfémica, como que demonstrando que não estamos na presença de um tema de Natal como outro qualquer. Logo no primeiro verso, pautado pelo papel preponderante da guitarra acústica, Corey apresenta o sujeito poético como alguém que não gosta da época natalícia, afirmando que não há nada mais deprimente do que um pinheiro enfeitado com bengalas doces e bolas, e que o Natal transforma todos em tolos. O refrão, já com a banda completa (guitarra elétrica, baixo elétrico, backing-vocals, percussões e bateria, o único instrumento que não foi gravado por Taylor), foca-se no modo como o sujeito poético não consegue (ou antes, não quer) apreciar o Natal (nem o Hanukkah, nem o Kwanzaa, tradições judaica e afro-americana, respetivamente) porque não tem dinheiro e porque depende do álcool durante esta época, resmungando “You know where to stick those Jingle Bells” e “And all you motherfuckers go to hell”. No segundo verso, Corey critica diretamente o consumismo natalício, e apela a políticas anti-capitalistas (“I think we collectively as a people / Should rise against this corporate jolly noise / And tell the world: "Let's buy some peace and quiet for a change" / Before we spend it all on fucking toys”). No segundo refrão, Corey apresenta-se como Scroodge, personagem principal de “A Christmas Carrol”, de Charles Dickens, um velho avarento e resmungão que só adere ao espírito natalício (e à bondade e generosidade que lhe vêm associados) após receber as visitas de três fantasmas, o do Natal Passado, o do Natal Presente e o do Natal Por Vir. É durante esta secção que Corey exclama “Fah-la-la-la-la, go fuck yourself!”, momento que sobressai – não só pelo seu valor cómico, mas porque é dito a solo, sem banda – e que encapsula todo o pensamento por detrás da letra e do vídeo desta canção: usar elementos típicos do Natal e profaná-los, distorcê-los ou retirá-los do seu contexto com intuito irónico, sarcástico, ou pura e simplesmente cínico. No final, Corey deseja-nos “Merry fucking Christmas!”, pelo que uma de duas coisas aconteceu: ou estamos perante um sujeito poético transformado (tal como Scroodge na novela Dickensiana), ou Corey abandona o fingimento poético e assume a sua própria personalidade, a do amante da época natalícia que diz ser. Para além disso, ouvimos ainda, se bem que de modo quase inaudível, “Hi, Simon!”, uma referência direta a Simon Cowell em jeito de provocação, ou mesmo de desafio, uma vez que um grande número dos singles que todos os anos dominam as tabelas natalícias no Reino Unido foram produzidos por Cowell.
Em suma, “X-M@$” surge, à primeira vista, como um tema anti-Natal, um Scroodge em forma musical que, através da sátira, da comédia, da ironia e do choque (introduzindo elementos perversos e obscenos como palavrões, álcool e sugestões sexuais), critica e goza com o modo como as sociedades modernas se comportam durante o Natal, uma festividade que aparenta ter-se tornado fútil ao serviço do capitalismo e do consumismo, segundo a visão do sujeito poético. Contudo, será de facto essa a mensagem de “X-M@$”? Na minha opinião, o foco de “X-M@$” poderá ser outro: parece-me possível que a crítica seja dirigida aos que partilham da opinião do sujeito poético, ou seja, àqueles que criticam o Natal e que dizem não ser felizes durante esta época, resmungando e remando contra a corrente da felicidade comum e quase obrigatória apenas para se destacarem pela diferença, mesmo que, no fundo, não acreditem de facto naquilo que estão a dizer.
Não sejam como essas pessoas.
Sejam como o Corey Taylor: “Merry fucking Christmas!”, e um feliz ano novo.
Guilherme Santos
Tema: “X-M@$” Artista: Corey Taylor Gravação: novembro 2010, Metropolis Studios, Londres Editora: Roadrunner Records Lançamento: dezembro 2012
Palavras-chave: “Natal”, “capitalismo”, “consumismo”, “crítica social”, “Scroodge”.