“K.G.”/“L.W.”: O labirinto musical hipnotizante de King Gizzard and the Lizard Wizard
Em novembro de 2020, a banda australiana King Gizzard and the Lizard Wizard lançou o seu décimo sexto álbum de estúdio elaborado ao longo dos seus cerca de dez anos de existência. Assim, enquadrando um vasto leque de possibilidades musicais em que a banda já demonstrou estar confortável, e tendo em conta que em 2017 lançou cinco álbuns que foram desde o jazz microtonal ao garage rock ou rock polirrítmico, surge “K.G.”, um álbum de, talvez, pop-rock microtonal que funde os ventos orientais com o universo ocidental através da utilização de um sistema tonal dividido em 24 tons, que acaba por duplicar as possibilidades às quais a tradição ocidental tende a cingir-se.
Tendo já existido experimentação e apresentação de resultados em “Flying Microtonal Banana” (2017), o sucesso prévio no cenário do rock microtonal foi essencial para o desenvolvimento de um trabalho mais sólido três anos depois. Embora a exploração do sistema microtonal tenha partido do uso do Saz Baglama – um instrumento tradicional turco –, a formação australiana decidiu adaptar também as suas guitarras elétricas, baixo e teclados, subdividindo os trastes dos mesmos ou, no caso do teclado, alterando a afinação de uma forma quase artesanal. Deste modo, ao longo do tempo, o conforto e familiarização com as alterações dos instrumentos serviram a função de chave para as portas do mundo do pop e/ou rock microtonal presentes em “K.G.”.
Em “Automation” e “Some of Us”, dois dos vários singles do álbum, bem como em “Ontology”, é nos apresentada uma autêntica “parede de som”, que remonta a álbuns anteriores com uma sonoridade maioritariamente ligada ao rock psicadélico, na qual as guitarras parecem tomar o protagonismo, mas onde o trabalho da bateria merece ser notado, por encaminhar os temas referidos em todos os momentos. Canções como “Honey” ou “Straws in the Wind”, no entanto, trazem-nos uma brisa de doçura e familiaridade dentro da estranheza. Ouvir as “notas entre as notas” pode causar algum desconforto inicialmente, visto que o ouvido ocidental está formatado para os 12 tons a que nos habituamos involuntariamente, atirando, num típico gesto de autocentrismo ocidental, a imensidão de notas fora deste sistema para o “caixote” da desafinação.
No entanto, quantos mais microtons atravessam os nossos ouvidos, menos estranhos e mais necessários se tornam, daí a necessidade de uma continuação dos 10 temas que deliciam o ouvido curioso e atento a cada pormenor que ressoa de cada um dos 6 membros desta banda: Stu Mackenzie (compositor, guitarrista e vocalista), Joey Walker (compositor, guitarrista e vocalista), Ambrose Kenny-Smith (teclados, harmónica e vocalista), Cook Craig (guitarrista e vozes secundárias), Lucas Skinner (baixo) e Michael Cavanagh (baterista)1.
Assim, para saciar a vontade de todos os fãs do aclamado Gizzverse ou de ouvintes mais passivos que pretendem explorar o universo microtonal, em fevereiro de 2021, cerca de 4 meses depois, foi lançado o irmão de “K.G.”, sob o nome “L.W.”. Este irmão mais novo manteve-se, por genética, ligado ao mais velho pelos microtons e por completar a sigla “K.G.L.W.”, correspondente a King Gizzard and the Lizard Wizard, mas, no entanto, trouxe também consigo um ambiente mais pesado, maioritariamente associado ao rock psicadélico, com influências de garage rock nas ondas de distorção, que nos engolem em temas como "Pleura", "Ataraxia" e "K.G.L.W".
As frases alucinantes compostas por Stu Mackenzie e Joey Walker, que se encontram presentes ao longo de todo o álbum, levam o ouvinte a um estado de hipnose quase catártica, quando comparado com o que sucedeu musicalmente em 2017 aos King Gizzard. Ao ouvir os temas “If Not Now, Then When?”, “O.N.E.” e “Static Electricity”, somos relembrados de que fomos atirados para dentro de um labirinto que nos engolira desde o início do álbum “K.G.”, sendo que, ao terminar a experiência de audição desta sequela de álbuns, parecemos regressar ao início num percurso circular que começa com um tema cujo nome é “K.G.L.W.” e termina num tema com o mesmo nome, que corresponde também à junção dos nomes de ambos os álbuns – “K.G.” e “L.W.”.
Esta sequência de álbuns é mais uma demonstração da genialidade da banda australiana, que, pelo seu trabalho, já deixou bastante clara a vontade de revolucionar o paradigma do rock a nível mundial, atacando todas as conceções até agora impostas ao explorar um sistema tonal estranho ao mundo ocidental, usar padrões rítmicos que em muito se diferenciam daquilo a que estamos habituados e, acima de tudo, demonstrar uma versatilidade extrema, presente numa comparação, por exemplo, entre os álbuns “Infest the Rat’s Nest” (2019) e “Paper Mâché Dream Balloon” (2015), paradoxais por se enquadrarem no Thrash Metal e Folk Rock, respetivamente.
Os Gizz, como são recorrentemente apelidados, já demonstraram ser alérgicos à categorização, e tanto “K.G.” como “L.W.” são uma prova disso: Seja através da vontade de dançar suscitada por “Intransport” ou dos ares de folk presentes em “Honey”, no álbum “K.G.”, ou de uma postura mais brincalhona em “If Not Now, Then When?”, que se opõe ao doom rock do último “K.G.L.W.”.
Resta-nos então esperar para ver que mais nos trarão King Gizzard and the Lizard Wizard, num 2021 em que lançaram já dois álbuns contrastantes: “L.W.” e “Butterfly 3000”. A magnificência de uma banda cuja versatilidade parece não ter limites mergulha-nos num labirinto do qual não queremos sair, provando que a sua hipnose e misticidade são não só contagiantes mas também eficazes.
Francisco Sanona
1 Note-se que, até há alguns meses, a banda era composta por 2 bateristas, incluindo assim Eric Moore, que agora está encarregue do agenciamento da banda e da gestão da editora da mesma: a Flightless Records.
Títulos: “K.G.”; “L.W.” Autores: King Gizzard and the Lizard Wizard Editora e ano: KGLW, 2020; KGLW, 2021 Produção: Stu Mackenzie
Palavras-chave: “rock”; “microtonal”; “rock psicadélico”; “música australiana”.