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Uma estrela italiana saída do futuro

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Se experimentássemos mergulhar na cena underground da região de Milão há quase uma década, talvez tivéssemos a ocasião – e o prazer – de dar de caras com o sugestivo nome de M¥SS KETA, ou com a sua cara tapada, do nariz para baixo, com uma máscara, anos antes da pandemia da COVID-19. Em pleno 2022, já é impossível (e desaconselhado) fugir deste fenómeno italiano.


A música “PAZZESCA” foi a minha introdução ao mundo de M¥SS KETA (ou Myss Keta, para facilitar a extravagância ortográfica). Mostraram-ma, com as boas intenções típicas de quem apresenta música a pessoas queridas, de tom meio sarcástico, como se houvesse algo de inseguro em relação a gostar daquela música. Eu gostei imediatamente, tanto do tom desafiador de Keta, como do ritmo dançante de discoteca, experiência complementada por um videoclipe provocador e altamente vermelho, adjetivos completamente apropriados à própria artista. Só mais tarde, graças ao desenvolvimento da minha proficiência na língua italiana, me apercebi dos inúmeros trocadilhos e wordplays da estrela italiana – que tão bem se adequam à sua voz. Era um som que eu nunca tinha sentido na minha (até então escassa) experiência com a música italiana, que eu bem tentava explorar e à qual me sentia limitada aos passados e gloriosos anos 60 e 70: clássicos como a querida Mina, Gino Paoli ou Tony Renis. Myss Keta abriu-me as portas à mentalidade moderna que eu julgara, erroneamente, ser escassa na sociedade italiana, essa que aparentava estar grandemente estagnada em valores antiquados. Para além da falaciosa generalização que eu própria empregava, faltava-me ter acesso ao lado desafiador da música italiana, o qual me parece ser encabeçado não só, mas em grande parte, por Myss Keta.


“MILANO SUSHI & COCA” (2013), o seu primeiro single, foi a estreia perfeita da artista e continua a ser uma das suas músicas mais bem-sucedidas. Retrato provocador da vida noturna de Milão (o verso “Vodka, keta e soda” é bastante revelador), serviu para inseri-la neste ambiente e, ao mesmo tempo, distanciá-la. É uma figura surgida deste contexto, mas estabelece a distância necessária para poder retratá-lo, tanto de forma verídica como irónica. Importa explicitar, desde já, que Myss Keta não é um trabalho individual da pessoa por trás da máscara: pelo contrário, Keta é, ao mesmo tempo, fundadora e fruto de uma colaboração conjunta do coletivo artístico Motel Forlanini, cujo primado se define por desconstruir o objeto artístico e desconcertar o público associado.


A dificuldade de definir esta personagem intromete-se. Parece irrelevante estabelecer se a sua música é pop, rap ou eletrónica (sendo que é tudo isto); Myss Keta não é só música, mas sim uma experiência, celebração da diferença, da autoaceitação absoluta, ícone feminista e queer. “Transfemminista multidimensionale / Primitiva / Futuribile / Non binaria / Aerodinamica / Liquida / Pansessuale / Passato, futuro, passato, futuro, presente” ouvimos, em “SKIT / LA STANZA DELL’ARTE”, apologia de um futuro oxalá não tão distante. É, sem sombra de competição, a riot grrrl italiana. Proveniente de Milão – a metrópole, por excelência, de Itália –, canta sobre esse mundo VIP e de glamour, a noite milanesa, sem esconder o seu lado indecente: o sexo, as drogas, o álcool. Permanente e constantemente num tom sarcástico e lacerante, sem pudor. É reconhecida como a diva da Porta Venezia, o bairro LGBTQIA+ de Milão: “LE RAGAZZE DI PORTA VENEZIA” é um dos seus singles mais célebres, uma ode à confluência das mais diversas culturas e gerações que se dá nesse distrito e derradeiro manifesto feminista – “Siamo ragazze, siamo donne, siamo il mistero / E non ci dire cosa fare / Noi non la faremo” (“Somos raparigas, somos mulheres, somos mistério / E não nos digam o que fazer / Não o faremos”, tradução livre da autora).


A primeira compilação da artista aparece em 2016, sob o nome de L'ANGELO DALL'OCCHIALE DA SERA: COL CUORE IN GOLA, álbum que reúne os seus primeiros sucessos (incluindo as já referidas “MILANO SUSHI & COCA” e “LE RAGAZZE DI PORTA VENEZIA”). É só em 2018, porém, que lança o seu primeiro álbum de estúdio. Em UNA VITA IN CAPSLOCK, um produto mais consistente e calculado, Myss Keta personifica e desenvolve, por completo, a sua persona. A par desse álbum é lançado, no mesmo ano, o livro Una donna che conta, autobiografia fictícia da cantora. Em 2019, chega PAPRIKA, um álbum que conta com participações de vários artistas reconhecidos no panorama pop italiano, como Elodie ou Mahmood, e que cimentou a posição de Keta na realidade moderna da música italiana.


Num país ainda fortemente tomado pela influência religiosa e tradições conservadoras, Myss Keta representa uma lufada de ar fresco. Em 2019, num concerto em Bologna, apresentou um remix do discurso entretanto viral de Giorgia Meloni, presidente do partido italiano de extrema-direita Fratelli d'Italia, candidata (e, infelizmente, potencial vencedora) nas eleições italianas de 2022, que terão lugar no próximo dia 25 de setembro. Caso ganhe, Meloni será a primeira primeira-ministra na história da política italiana, realização insatisfatória quando se pensa em tudo o que defende. Myss Keta dança ao som de “Io sono Giorgia / Sono una donna / Sono una madre / Sono cristiana” (“Sou a Giorgia / Sou mulher / Sou mãe / Sou cristã”, tradução livre da autora), ridiculizando as afirmações conservadoras e antiquadas da senhora Meloni.


O universo myssketiano merece e orgulha-se de todo o burburinho ao qual está associado. A figura possante de Myss Keta não ofusca o poder das suas músicas, que nos fazem querer abanar o corpo como nunca antes e gritar palavras em italiano a plenos pulmões. Antes pelo contrário, complementam-se de forma imaculada, formando um todo musical que nos impele a embarcar num voo com destino a Milão, apanhar o metro até à estação arco-íris Porta Venezia e passar a noite a dançar com M¥SS KETA.





16 de setembro de 2022

Maria Beatriz Rodrigues






Palavras-chave: myss keta, música italiana, pop, rap, eletrónica



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