O sagrado e o profano em Blonde de Frank Ocean (2016)
Blonde, ou blond, é o segundo disco de Frank Ocean, lançado no final de Agosto de 2016. O álbum foi gravado entre 2013 e 2016, primeiro em Nova Iorque, e depois em Los Angeles e em Londres, nos estúdios de Abbey Road. Passou pelas mãos de vários produtores, como James Blake e o próprio Frank Ocean. O som é minimalista, longe das drum machines pesadas do trap ou dos arranjos portentosos do R&B da década de 2000, e utiliza as guitarras muitas vezes como uma exteriorização ou comentário do que é cantado, com letras que são propositadamente elípticas ("Play these songs, it's therapy, momma") sobre fins e inícios de relações, o passado, a sexualidade, o divino, ou a sociedade de consumo.
Leitor, vamos vê-lo em acção já em “Solo”. Doce narrador que pára o vento da Windy City só por uma noite: “No trees to blow through / but blow me and I owe you / two grams when the sun rise / smoking good”, o mesmo que domina as chuvas oblíquas aqui a pintar um romance em apenas quatro versos. Impressionado? E um romance em apenas dois versos? “Fuck ‘round, be cutting you / Think we were better off solo”. Que acompanhamento musical neste recitativo? Um órgão, antigo basso continuo das óperas, tocado pelo fiel James Blake que calca o fidelíssimo Bach. So low. Estóico: “It’s hell on Earth and the city is on fire”. Subversão: “in hell there’s heaven”. Uma força imparável encontra uma massa imovível: “a bull and a matador dueling in the sky”. A personagem sai pela porta grande da cadência fechada.
Que voz linda tem Frank Ocean. Por exemplo, em “Skyline To” (“Making sweet love / taking time / Till God strikes us”). A luz de Gomorra, das paixões que o Livro não permite? “Pretty fucking / sunrise in sight / In comes the morning / haunting us with the beams”. Estás a envelhecer, ouvinte? “We smell of californication” neste verão truncado, o solstício a falhar-nos, mais curto que no passado. A guitarra, suave acompanhamento, é substituída por um teclado introspectivo, subaquático. Fumo e névoa. A guitarra dos Red Hot Chilli Peppers aparece como prólogo para o “boyfriend / in your wet dreams tonight”, em “Self Control”, onde a pungente linha “Keep a place for me / I’ll sleep between y’all” mostra como a paixão deixa um resíduo por vezes indelével. Acompanhando-se a si próprio, a canção termina com harmonias ásperas, metálicas. Estaria Frank Ocean na mesma sala onde anos antes os Beatles gravaram “Because”, do álbum Abbey Road? Essas linhas cruzam-se, por vezes. Como em Close to You, os Carpenters debaixo de uma roupagem EDM? Nas noites brancas o amor antigo romantizado pela passagem do tempo, tão difícil, tão fácil, tão ambíguo quanto.
Em “Ivy” temos três frentes, guitarra, baixo e um sonho (“I thought that I was dreaming / when you said you loved me”). Sem percussão, a secção rítmica é levada completamente pelo baixo, e a guitarra funciona como fantasia que harmoniza com Ocean. O passado assombra Frank Ocean como falsamente idílico – pomos os versos de Álvaro de Campos “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto”, a conversar com “We didn’t give a fuck back then / I ain’t a kid no more / We’ll never be those kids again… Everything sucked back then”. O falsete em “Ivory’s illegal, don’t you remember?” segue para uma bridge onde ecos da própria voz levam a um efeito de deslocamento espacial, até que no último momento, quando o ente que sonha é agora outro (“I’ve been dreaming of you”), a voz está completamente distorcida.
“Pink+White” é o som mais tradicionalmente R&B, com um beat marcado pela bateria, baixo e pelo piano. No entanto, a secção “you showed me love / glory from above”, o hossana que deu o mote a esta investigação, já a distingue de milhões de outras músicas deste tipo. Primeiro só a bateria e depois um violino acompanham Frank Ocean até voltar de novo ao tema. A vida e a imortalidade, acompanhado de Beyoncé: “Gimme something sweet / Bitch, I might like immortality”.
A dinâmica de “Nights” fá-la uma sequela de “Pyramids”, do álbum anterior, constituída de várias partes. Na primeira, a guitarra é seca, longínqua, mas extasiada, o poema acusador (“Why your eyes well up… You are from my past life / Hope you’re doing well bruh… Everybody needs you”). No refrão, um sintetizador acompanha uma nova noite (“New beginnings, wake up / The sun’s going down… You know you need the money if you going to survive”), onde os conceitos de prazer e sagrado são unidos, depois da exposição de uma relação que não está a funcionar e de onde a personagem quer retirar apenas a sua parte (“Wanna see nirvana / but don’t want to die yet”). Uma noite serve, em metonímia, como uma vida: “All my night / Been ready for you all my night”. Guitarras distorcidas guiam-nos ao core emocional da música.
The other side of a loop is a loop. Depois do loop, musique concrète, se as palavras não nos servirem então a soma dos sons. Seigfried, ópera de Wagner. Um “fond farewell to a friend”. Primeiro uma guitarra escondida, depois virá um basso continuo (é o passo da floresta). Porquê a referência ao pensamento que se pensa, o deus de Aristóteles? “I’ve been living in an idea / An idea from another man’s mind”. Vamos caçar esta divindade: “eat some shrooms / maybe have a good cry about you”.
O que recomendas que faça, Seigfried, filho de Sigmund, esposo de Kriemhilda? Faria qualquer coisa por ti (no escuro). “A glimmer of God?... I’d rather chip my pride then lose my mind out here”.
Seigfried, filho de Sigmund, esposo de Kriemhilda: I tried hell.
Deus prossegue viagem em “Godspeed”: “The table is prepared for you / wishing you godspeed, glory”. Últimas ceias, amante despedido: este deus sangrará antes de poder seguir: “I’ll always love you / Let go of a prayer for you”. James Blake acompanha no órgão, ouve-se a cadência plagal. “I’ll let go of my claim on you, it’s a free world”. Ele mostra-te as montanhas que não poderás mover. Não choras aqui, ouvinte? Que verão é este, agosto de 2016? Saída em psicadelismo – “silence in the ears, darkness of the mind”, por Kim Burrell, cantora gospel.
Existe um aforismo pensado por ou para José Cardoso Pires, não consigo precisar, de que toda a literatura é policial, e vem-me à cabeça o seu livro de sessenta e tal, O Delfim, sobre um escritor que vai para uma lagoa para caçar e acaba a fazer uma investigação suavíssima sobre um crime que aí ocorrera, quase sem uma gota de suor, trabalhando apenas com reminiscências, aquilo que se lembra de ter lido, ouvido, conversado. Quem realmente trabalha é o leitor, que escolhe entre alternativas apenas sugeridas, arrancando dos fragmentos verosimilhanças, nunca certezas. O leitor é obrigado a mostrar-se, navegando entre estas lacunas propositadas. O leitor primeiro como detective, depois como cúmplice. Frank Ocean tem qualquer coisa de Cardoso Pires.
Francisco Fernandes