My House, My Rules: O Enaltecimento da Cultura Negra por Beyoncé
2023 vai ser certamente relembrado como um ano fortíssimo para Beyoncé, não só pela conquista do recorde de artista detentora de mais Grammys da história até ao momento, mas também pelo sucesso esmagador da sua tournée internacional e agora do seu documentário-concerto “Renaissance: A Film by Beyoncé,” tudo isto no seguimento do lançamento do álbum RENAISSANCE em 2022. Este álbum constitui o primeiro de três atos do seu projeto musical atual, com conteúdos líricos que abarcam temáticas desde escapismo e hedonismo à autoexpressão e autoconfiança num resultado inovador, eclético e com uma mestria invejável de composição e produção. Este surge criativamente durante a pandemia de COVID-19, como um escape ao isolamento sentido durante a época conturbada em questão, celebrando uma era da música de discoteca onde era promovida a liberação de comunidades marginalizadas, celebrando e trazendo para as luzes da ribalta os pioneiros não reconhecidos dos géneros de dance music.
RENAISSANCE é em vários aspetos um álbum arrojado, sobretudo pela belíssima articulação entre os variados géneros musicais e figuras pioneiras que Beyoncé enaltece ao longo de dezasseis faixas. Indo desde house, a disco, passando por R&B e rap, Beyoncé evoca elementos e figuras ligados à comunidade queer negra, através da incorporação de elementos da cultura de ballroom e participação de personalidades ilustres como Grace Jones, Kevin JZ Prodigy e Honey Dijon. Uma grande inspiração para a elaboração deste álbum foi o seu primo “Uncle” Johnny, um homem homossexual que criou a cantora até ao seu falecimento no seguimento da epidemia de sida da década de 1980 e que a apresentou ao universo queer e à cultura de ballroom, bastante proeminentes ao longo de RENAISSANCE. O enaltecimento da comunidade queer e da comunidade negra num modo geral é o fio condutor do álbum, tendo Beyoncé dito o seguinte acerca de RENAISSANCE: “My intention was to create a safe place, a place without judgment. A place to be free of perfectionism and overthinking. A place to scream, release, feel freedom.”*
As ferramentas de homenagem presentes neste disco variam desde as mais óbvias, como a inclusão de personalidades acarinhadas pelas comunidades, como já mencionado no parágrafo anterior. No entanto, Beyoncé emprega também estratégias menos percetíveis para um ouvinte menos versado nos géneros musicais representados no álbum. A implementação de transições fluídas entre as faixas através da correspondência das batidas por minuto que se equiparam às misturas feitas pelos DJ’s na discoteca, tendo-se aqui uma das muitas referências à cultura de dance music. Outra ferramenta de homenagem é o ato de referenciação que ocorre através do uso de samples estratégicos, algo extremamente central na cultura de hip-hop, onde as canções ganham poder cultural e se afirmam através da referenciação a ícones musicais e culturais anteriores como uma forma de reverência e respeito.
RENAISSANCE, o sétimo álbum de estúdio da cantora, chega numa altura bastante interessante da indústria musical, onde se tem observado nos últimos anos uma presença crescente de dance music – house, UK garage, techno, drum&bass, para nomear apenas alguns. Ainda assim, Beyoncé traz-nos trabalhos musicais altamente experimentais, algo que muitas vezes não se vê por parte de grandes artistas porque eles sentem que já não têm nada que provar à indústria e ao seu público. Contudo, as apostas musicais da cantora têm sido consistentemente frutíferas, provando que Beyoncé e os seus colaboradores têm um entendimento profundo de como funciona a indústria musical e que conhecem o seu público, mesmo com riscos como a canção “My House”, que será agora abordada e analisada.
“My House” é o mais recente single de Beyoncé e constitui um lançamento surpresa, ou seja, sem nenhuma promoção prévia, coincidindo com a estreia do seu documentário-concerto. O single acompanha os créditos do filme e é uma fusão entre hip-hop e house. Escrita e produzida em conjunto com o seu colaborador de longa data Terius “The-Dream” Gesteelde-Diamant e uma publicação conjunta das discográficas Columbia Records e Parkwood Entertainment, a última fundada pela cantora, esta canção fez uma entrada em grande no top 10 da Billboard’s Hot Rap Songs, estando também no top 10 da Billboard’s Hot Dance/Electronic Songs, no top 20 do Hot R&B/Hip-Hop Songs e estreando-se no lugar 57 do Billboard’s Hot 100, dados coletados até ao dia 16 de dezembro. Esta faixa inicia-se com uma batida pesada de trap e uma grande presença de metais, aliados aos cânticos masculinos e uma performance vocal agressiva de Beyoncé, imprimindo desde o início uma dominância e assertividade sobre o ouvinte. A meio da canção ocorre uma mudança abrupta para uma batida de house com um apelo à autoaceitação e ao amor próprio.
Esta é uma canção bastante distinta e com inúmeras camadas texturais e variados significados líricos: a canção não apresenta uma estrutura óbvia de versos-refrão, mas isso é algo que não prejudica em nada a canção, sendo esta imprevisibilidade estrutural algo que funciona em seu favor, pondo o ouvinte à mercê de Beyoncé, tentando antecipar para onde a canção irá. “My House” é também uma conjunção bem conseguida entre o “flex” da riqueza, estatuto e prestígio da cantora e uma reivindicação de amor próprio como a chave para a revolução da sociedade. Em “My House” o ouvinte ganha em muito ao ouvir esta faixa de um modo mais atento e sobretudo com auscultadores, de forma a desvendar as inúmeras camadas texturais do instrumental e ad libs que contribuem para os temas da canção. A palavra “house” ganha múltiplos significados ao longo da canção, mostrando a mestria da composição lírica: ao acoplar esta canção com os créditos finais do filme, Beyoncé faz aludir à sala de cinema e ao filme em si, com os versos “Get the fuck up out my house” e “Ooh, who they came to see? Me”, com um aceno aos fãs que vieram ver o seu filme e que agora que chegaram os créditos, é hora de ir para casa. “House” dobra ainda de significado ao olharmos para essa palavra no contexto dos versos “Don’t give a fuck about my (House)/ Then get the fuck up out of my house” e “I grew up in this (House)/ I blew up in this (House)/ I’m too up in this (House)”: aqui “house” não só se refere ao espaço metafísico da música de Beyoncé, querendo dizer que ela não vai entreter pessoas que não apreciam a sua arte e faz um convite abrasivo a saírem do seu espaço, mas a palavra casa também pode ser interpretada como uma referência à indústria musical, mais precisamente ao mundo do hip-hop e R&B, a “house” onde Beyoncé cresceu, se estabeleceu artisticamente e que agora domina como um dos maiores nomes do mundo da música atual. No seguimento de palavras com múltiplos sentidos, a palavra “carry”, em português significando carregar, também dobra de significado tanto no sentido de carregar uma arma (“carry a weapon”), uma das amplas referências que Beyoncé faz ao tema lírico de “thug life” já presente em vários dos seus trabalhos aludindo às raízes do seu marido, mas “carry” surge também no sentido de “carregar a indústria musical às costas”, devido ao seu amplo sucesso e influência.
Duas das referências que se destacaram mais para mim durante as inúmeras escutas de “My House” foram a DJ Screw e a Rupaul Charles. A referência à primeira personalidade ocorre na primeira parte da canção no verso “I'm grabbin' grain, sippin' sideways on this candy paint (Candy paint; damn, damn)”. Aqui Beyoncé está a aludir para a canção “Grabbin Grain” de DJ Screw, uma importante figura do hip-hop dos 90’s da cidade natal da cantora, Houston. Este DJ ficou conhecido por ter desenvolvido a técnica e género musical chopped and screwed, que envolve a desaceleração de uma canção e a aplicação de outras técnicas de djing como skipping beats e scratching, criando uma versão “chopped” da canção original; esta técnica/género é o antecessor de géneros populares como vaporwave e o mais recente slowed+reverbed. Esta referência tem uma camada dupla, não só pela referência direta ao título de uma das canções de DJ Screw, mas também pela aplicação da técnica de chopped and screwed neste exato verso, onde a voz de Beyoncé soa bastante mais grave e lenta, por ter sido desacelerada. Já a referência a Rupaul Charles é apenas lírica, ocorrendo nos versos “I will always love you (Oh, house, house)/ But I'll never expect you to love me (Oh, house, house)/ When you don't love yourself (Oh, house, house)”. Rupaul é uma figura emblemática da cultura queer, sendo uma das drag queens mais conhecidas a nível mundial e que famosamente disse “If you can’t love yourself, how in the hell you gonna love somebody else?”.
“My House” é turbulenta, mas contagiante, encarando para mim o espírito da expressão “primeiro estranha-se e depois entranha-se”, sendo uma canção bastante texturada, continuando a mensagem de aceitação e libertação iniciada em RENAISSANCE e mantendo um equilíbrio calculado entre hip-hop e house. Com esta canção, todo o projeto RENAISSANCE e os atos II e III que ainda estão por vir, Beyoncé mostra ao seu público e à indústria musical que ela é capaz de se manter em constante inovação, sempre de um modo fiel à sua personalidade e marca, nunca deixando de referenciar e homenagear as suas raízes socioculturais num pacote musical completo e variado.
* “A minha intenção era criar um espaço seguro, um espaço sem julgamentos. Um espaço onde se pode ser livre do perfecionismo e overthinking. Um espaço para gritar, libertar, sentir liberdade.”
Patrícia Moreira