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E se o fim do mundo tivesse tanto de humor como de amor?

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A ameaça de um apocalipse nuclear paira sobre a humanidade desde os bombardeamentos atómicos de 1945 e continua a segurar-nos num aperto forte até aos dias de hoje, especialmente quando somos confrontados com paradas militares de grandes potências mundiais em praça pública, numa demonstração de poder e intimidação. Naturalmente, esta ameaça não demoraria muito tempo a chegar ao campo da música e damos de caras com este fenómeno na canção de Matt Maltese “As The World Caves In”, single lançado em 2017 como apresentação do seu álbum de estreia Bad Contestant (2018).

Matt Maltese é um músico do cenário londrino com influências alargadas, desde Leonard Cohen a King Krule. A sua inspiração em Cohen é já bastante antiga, tendo ele uma grande admiração pelo artista desde a sua infância, dando destaque a um álbum específico da sua discografia: Death of a Ladies’ Man. Em conversa com a Interview Magazine, Maltese refere que esse álbum é o seu favorito e que o que o atraiu inicialmente foram as letras curiosas e a percussão excêntrica que produzem um resultado “mágico”.

A sua música é recheada de sentimentos melancólicos e românticos, nunca deixando para trás comentários políticos e a sátira. O seu estilo pode ser descrito como “Brexit pop” ou por um outro termo mais interessante, “Schmaltzcore”, introduzido pela NME (New Musical Express), uma revista musical britânica que descreve num artigo uma nova onda de artistas do cenário britânico que se tem formado na sequência da herança sonora de Jamie Callum. “Schmaltzcore” deriva da expressão Schmaltz, que significa um trabalho artístico, de carácter literário ou musical, capaz de induzir sentimentos românticos fortes ou de grande tristeza, sem que tenha realmente algum valor artístico; esta noção de sentimentos românticos/melancólicos, em associação com as sonoridades de soft-pop e uma maneira de cantar ao estilo crooning (canto suave, em tom quase sussurrado e “altamente sedutor”, popularizado nos anos 1940/50, frequentemente associado a Frank Sinatra), encapsula perfeitamente o estilo que Matt Maltese tem projetado até agora.

Segundo a revista NME, outros artistas que se inserem na linha do Schmaltzcore são, por exemplo, Tom Misch e Rex Orange County e com estes exemplos podemos rapidamente perceber a que tipo de sonoridade estamos a fazer referência quando falamos deste estilo. Matt Maltese revê-se no Schmaltzcore, mas considera a dimensão satírica da sua música altamente central e isso é algo de que rapidamente nos apercebemos na sua discografia, especialmente na canção em análise. Maltese afirma ser um romântico, algo essencial para um “crooner”, mas nunca prescindindo da ironia e da capacidade de gozar com as suas próprias circunstâncias.

“As The World Caves In” é uma balada apocalítica que tem como premissa um hipotético último dia romântico entre Theresa May e Donald Trump, após despoletarem a destruição nuclear do mundo. Esta canção inspirou-se na aprovação do programa nuclear britânico Trident por Theresa May e o clima político geral do ano de 2016. Matt disse numa entrevista que esperava que a música fosse interpretada como “romântica, sensual, mas também sinistra e idiota.” No ano passado, na sua conta de Twitter, Maltese afirmou que esta música já não era acerca do par original May/Trump.

Ao recorrer à sátira, Matt Maltese consegue obter uma certa separação da sua escrita, dando uma nova dimensão de significado ao seu trabalho. A balada passa de uma composição arrebatadora e emocional para uma espécie de crítica política, sem nunca perder o sentimento, mas sim adicionando a este. Esta técnica vai ser muito relevante nas composições de Maltese, sendo que ele considera que é uma boa tática para o equilíbrio entre o humor e o romântico.

A canção começa imediatamente com a voz, lamentando o cansaço que ele e a sua parceira sentem e o modo como afogam as suas mágoas no álcool, observando o fim do mundo. O instrumental atua como um espelho emocional das palavras, sendo marcado por uma harmonia simples no piano com reverberação, quase como se o ouvinte se encontrasse dentro do instrumento a sentir as vibrações. A canção é ocasionalmente pontuada por harmonizações vocais para reforçar certas palavras e dar maior profundidade à melodia.

A instrumentação vai aumentando em número no pré-refrão, com a adição de uma guitarra elétrica e percussão, onde o peso das palavras “our final night alive” e “as the earth burns to the ground” se afunda dentro do ouvinte, com o ritmo da canção a desacelerar, e esses dois versos parecem ficar brevemente suspensos no ar até à entrada do refrão. A tensão cresce lentamente no verso de entrada do refrão e é libertada na palavra “you”, que Matt canta num gesto de libertação. Esta intensidade é acentuada pela percussão, que desempenha um lugar de destaque junto com as harmonias do piano durante o refrão. Esta secção é definitivamente aquela que tem mais impacto emocional e na qual está patente um sentimento indiscritível de sabermos que é a última vez que estamos com alguém que tanto significa para nós, sem haver nada que se possa fazer para alterar essa condição.

O refrão é relativamente curto, com apenas 4 versos, mas transparece bastante: é um compromisso imortal, uma promessa de que não há ninguém com quem ele prefira estar para além da sua parceira, mesmo que essa presença seja apenas para fazer coisas mundanas como ver televisão; enquanto o mundo se desvanece, o sujeito poético apenas quer a companhia da pessoa que mais significado tem para ele.

A segunda estrofe fala sobre o casal a aperaltar-se para a ocasião (“oh we’re going out in style babe”), o que não deixa de ser algo de especial: aquela é a última noite da humanidade. O sujeito poético revela agora um medo que não tinha surgido antes, falando da sua aproximação ao momento de extinção. O casal decide que querem adormecer juntos, nos braços um do outro, e o sujeito poético derrama uma lágrima, sabendo que não há uma promessa do amanhã. Esta estrofe não abandona a guitarra e a percussão que vieram de trás, fazendo com que a construção de tensão do pré-refrão tenha de ser feita de modo diferente, começando forte com as harmonias corais e uma percussão marcante, sendo que se notam variações na linha do piano, fazendo agora um acompanhamento muito mais cheio e diversificado.

O piano e a percussão entram em força no refrão, entrando também a voz de Matt em todo o seu esplendor, com um magnífico efeito de reverberação como se estivéssemos a ouvir esta música num grande salão vazio, quase ecoando a situação sobre a qual canta. Este último refrão apresenta o dobro do tamanho e algumas variações em termos de melodia (adicionando um pouco de dramatismo), sendo os primeiros quatro versos idênticos ao primeiro refrão, repetindo depois os versos “Oh, it’s you that I lie with / As the atom bomb locks in” e adicionando um novo “Yes, it’s you I welcome death with.” Já não sentimos o medo expressado na estrofe anterior, o sujeito poético já se conformou com a ideia do seu fim e abraça a morte como abraça a sua parceira.

O refrão termina na sua maneira usual, com o verso “As the world, as the world caves in”, seguido de uma secção instrumental final muito evocativa da célebre “Bohemian Rhapsody”, sobretudo pela progressão da linha da guitarra elétrica. A canção termina apenas com o piano em registo grave e a voz de Matt, do mesmo modo como a canção começa.

“As The World Caves In” parece obter a mistura certa entre amor, tragédia e humor, fazendo-nos refletir sobre se alguma vez nos veremos numa situação como a das personagens da canção. O videoclipe faz também um excelente trabalho a evocar esta mistura de sentimentos peculiares, ao introduzir imagética fora do seu contexto usual, como um casal abraçado no sofá a pintar as cruzes para as suas campas, constituindo um memento mori (um objeto que nos relembra da inevitabilidade da morte). Toda a aura bizarra da música é perfeitamente captada pela interpretação de Matt Maltese, que opta por escolher dois atores para se poder remover da narrativa (contribui para a componente satírica que pretende alcançar), dançando e cantando à volta do casal e da sua casa como se fosse invisível para eles. Todo o espetáculo de dança coreografado (e Matt a rodopiar no centro) dá-nos um sentimento de desconforto, já que uma balada costuma ser mais intimista e sentimental, não integrando por norma um grupo de dançarinos em perfeita sincronia. O videoclipe termina com uma imagem forte, que surge aquando do verso “Yes, it’s you I welcome death with”, onde vemos o casal a abraçar-se enquanto se baixa para entrar em conjunto no seu caixão, e vemos Matt proferir as últimas palavras da canção em cima desse mesmo caixão.

Obtemos uma mistura pungente entre sentimentos de amor e perda, dando-nos arrepios num segundo e fazendo-nos rir no seguinte. Matt Maltese consegue este equilíbrio perfeito e facilmente se entende porque é que esta é a sua música mais popular. Em entrevista, o cantor confessa que esta canção dificilmente sairá da rotação dos concertos, pois afirma que, enquanto o planeta não se encontrar desnuclearizado, ela será sempre relevante.

Patrícia Moreira

Título do álbum: Bad Contestant Artista: Matt Maltese Editora: Atlantic Ano: 2018 Produção: Hugo White

Palavras-chave: "música pop" "pop rock" “brexit pop”, "schmaltzcore".



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