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Crash – a nova faceta pop de Charli XCX

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Depois de how i’m feeling now, Charli XCX surpreende os seus fãs em 2022 com o seu mais recente lançamento Crash. Lançado apenas no passado mês de março através da Asylum/Atlantic Records – e encerrando assim o seu contrato com a editora discográfica norte-americana que a acompanha desde o início da sua carreira – Crash já se tornou um êxito internacional.

A inglesa Charli XCX estreou-se no mundo da música em 2012. Tocou em várias raves ilegais nos bairros londrinos, enquanto acabava os seus estudos. Tornou-se conhecida depois da sua colaboração com Icona Pop na música “I Love It” – terá Charli preparado o seu público para Crash, quando, dez anos antes, cantou “I crash my car into the bridge / I don’t care / I love it”? – e depois da sua participação em “Fancy”, single de Iggy Azalea.

Em 2013 lança o seu primeiro álbum de estúdio, True Romance – referência ao filme de 1993 escrito por Quentin Tarantino. Simultaneamente influenciada pela cena punk da década de 90 e pela música pop de 2000 – cita Blackout (2007) de Britney Spears múltiplas vezes como referência lapidar para a sua identidade musical – lança Sucker em 2015, onde singles como “Break the Rules” ou “Doing it”, com a participação de Rita Ora, impulsionaram a sua carreira e a cunharam como artista pop. Contudo, foi a partir de 2017, com o lançamento das mixtapes Number 1 Angel e Pop 2, que as massas começaram a prestar mais atenção a Charli e a sua base de fãs aumentou, juntando uma miríade de fãs de música eletrónica, hyperpop e da pop alternativa. Number 1 Angel conta com colaborações de MØ na música “3 AM (Pull Up)”, Uffie em “Baby Girl” ou com a rapper CupcakKe numa das músicas mais frenéticas e atrevidas de Charli, “Lipgloss”. Já Pop 2, a segunda mixtape, é, na sua génese, um álbum colaborativo: dez temas são colaborações meticulosas onde, regra geral, é possível ouvir e sentir a química entre Charli e o artista convidado, como acontece nas músicas “Backseat” com Carly Rae Jepsen, “Tears” que junta Caroline Polachek (vocalista do ex-duo Chairlift), temas como “Femmebot” onde podemos ouvir Dorian Eletra e Mikky Blanco, o hit que o TikTok tornou viral, “Unlock It” com Kim Petras e Jay Park e “Porsche”, novamente acompanhada pela MØ, onde a admiração de Charli por carros caros e velozes não passa despercebida, quando canta: “I've been fantasizin' 'bout a Porsche / Get that dough-oh-oh-oh / I've been kneadin', kneadin' 'til I'm sore, 'til it grow-oh-oh-oh” (mais tarde teríamos outros hits como “White Mercedes”). Os restantes dois temas são da autoria da inglesa e a produção alterna entre o seu amigo e produtor inglês A. G. Cook, Danny L Harle e SOPHIE (Sophie Xeon). Todas as colaborações são especiais e estrategicamente formuladas para serem êxitos na pista de dança ou numa qualquer rave, juntando, como complemento, elementos de PC music, sem abandonar a sensação bubblegum tão característica da pop. Cada música mostra uma nova faceta da música pop de forma sublime e radical. Em Pop 2, Charli explorou o perímetro da pop, utilizou várias vezes auto-tune – apesar da sua capacidade vocal ser suficientemente boa, a natureza da escolha é arbitrariamente experimental – e moldou a sua música como se fosse barro e, com uma pequena ajuda dos seus amigos (como cantariam os Beatles), preparou os seus fãs mais ansiosos e acostumados para a experiência catastrófica de clubbing do ciberespaço – basta pensar na música surrealmente robótica “Shake It”, do seu seguinte álbum, Charli, lançado em 2019. Recheado de colaborações – uma vez mais – deliciosas, Charli brilha e deixa brilhar, criando o seu próprio universo, cheio de distorção vocal e pautado pela ausência de instrumentos acústicos. No ano seguinte, em how i’m feeling now, a narrativa é diferente. O projeto solitário mostra o lado sensível e vulnerável da jovem música, fruto da crise pandémica vivida em 2020. Se o ingrediente chave para o sucesso de how i’m feeling now foi a fusão entre a produção experimental e a massificação completa do hyperpop – género indissociável do coletivo PC music onde SOPHIE, 100 gecs e a própria Charli se incluem – em Crash a questão é mais complexa.

Versátil, radical e, paradoxalmente, submisso a todas as convenções e estruturas na indústria da música pop, Crash incorpora tudo aquilo que Charli outrora negou. Isto acontece não só porque Charli queria surpreender – e surpreender-se – e ser imprevisível – sentia que esperavam dela somente música limitada pelo hyperpop – mas também porque sentiu a necessidade de desafiar-se a si mesma, numa espécie de exercício artístico, provando que era capaz de se tornar a tradicional estrela pop que a sua editora sempre desejou que fosse, apenas na hora da despedida. Para isso utilizou todos os recursos disponíveis dentro do suporte da grande editora discográfica – o que me pareceu bastante ousado – e concretizou de forma exímia. Talvez a ideia de sucumbir à pressão da indústria musical possa parecer cobarde, – pouco revolucionário até da parte de Charli que sempre se considerou diferente – mas a realidade é que não me parece que seja esse o caso. Não se trata nem de um gesto de simpatia para com a Asylum/ Atlantic Records nem de cinismo, mas um reinventar-se completo e radical de uma artista multifacetada que tem capacidade – e bravura – para se tornar aquilo que quiser, apenas para provar o seu talento a quem ousar duvidar dele. Na primeira música, intitulada justamente “Crash”, Charli canta: “I’m about to crash into the water, gonna take you with me / I’m high voltage, self-destructive, end it all so legendary” – evidenciando o fim do ciclo musical e o fim do contrato discográfico.

Crash foi dedicado a SOPHIE, – música e produtora inglesa e amiga próxima de Charli – honrando o seu inesperado falecimento no início do ano passado. Durante a execução de Crash, explica numa entrevista à Apple Music, Charli perguntava-se a si mesma o que diria SOPHIE sobre o processo criativo, sublinhando a relação íntima que partilhava com a jovem artista e revelando o quão inspiradora SOPHIE era. O nome e a estética do seu quinto álbum de estúdio são referências ao filme “Crash” (1996) de David Cronenberg, cujo enredo se desenrola em torno de um grupo que busca prazer em acidentes automobilísticos.

Crash oscila entre a adrenalina, o arrependimento, o desejo, o carnal e a lógica do querer-o-que-não-se-tem em pouco mais de meia hora. A sonoridade hyperpop é substancialmente mais discreta, imperando a influência da música pop dos anos 80. Na música “Lightning” podemos ouvir a influência do hit de Madonna (referida amiúde como a rainha da pop) “Into the Groove” e é nela que ouvimos o maior crescendo em Crash – daqueles que deixam qualquer pessoa em pulgas. Robin S. é outra referência imperativa: a sample da “Show me Love” para a música “Used To Know Me” funcionou de forma excecional (como foi possível transformar uma música já em si brilhante numa outra tão boa ou melhor?). Em “Used To Know Me”, Charli fala sobre a sua própria metamorfose – na sua vida pessoal e artística – e no refrão canta sobre a sua libertação e sobre como já não é a pessoa que antes foi: “You used to know me, now you don't / You used to hypnotize me, did it so easy / I'm finally free from your control / I don't need a kiss goodbye / I'm on my own tonight” – o que torna o tema uma espécie de lema sobre empoderamento e afirmação pessoal.

A inspiração que Charli bebe da inglesa Dua Lipa – isto é, do Future Nostalgia, o seu mais recente álbum – também é evidente se prestarmos atenção ao baixo ousado, intenso e catchy, amplificado em músicas como “Constant Repeat” e “Yuck” – as músicas que mais se destacam em Crash pela sua harmonia instrumental, vocal e lírica. “Yuck” parece uma página de diário que nos faz rir e chorar em diferentes passagens: é intima e expõe a irracionalidade do sensível, enfim, do amor (ninguém se farta disso, aliás, Paul McCartney já dizia: “You'd think that people would have had enough of silly love songs / I look around me and I see it isn't so”).

Em Crash, as colaborações são mais limitadas. Charli resgata Caroline Polachek e Christine and The Queens (Heloise Letissier) para a música “New Shapes” onde, uma vez mais, se pensa no amor, agora no seu sentido mais lato, segundo uma nova perspetiva, isto é, através de uma nova forma. O trio brilhou, cada uma a seu tempo – não era de esperar outra coisa, se tivermos em consideração o talento desmedido de Polachek, a criatividade de Letissier e a afinidade conhecida entre as três cantoras. Já a música “Beg For You”, com a participação de Rina Sawayama, saiu como single e as expectativas eram altas. Contudo, foi bastante agridoce ouvi-la, não pela performance de Sawayama mas por ser tão parecida com a música da qual faz sample, “Cry For You” de September.

É impossível escapar a outra associação: o remix do tema “Sweet Dreams (Are Made of This) do famoso duo Eurythmics é a receita chave para que “Good Ones” seja uma das músicas mais contagiantes – se não a mais contagiante – em Crash. O tema concorre com “Baby” na disputa para melhor música para a pista de dança: “Baby” é rápida, sensual e nunca vimos Charli tão decidida: “Why you tryin' to fight what's right? (mmh) / (What's right, what's right, what's right) / You know I'm 'bout to change your life for good / You can play pretend (mmh), that's fine (that's fine) / I know the truth, you really wish you would / Baby”.

Em contraste, temos o tema “Move Me” e o seu registo lento e emocional, onde nos providencia um crescendo arrepiante. A voz de Charli mostrou-se bastante trabalhada, sem recorrer ao auto-tune de forma tão frequente como fez até há pouco – temos uma quantidade de falsetes louvável – mas não deixou por isso de ter a sensualidade da sua rouquidão.

A música “Every Rule” lembra o tema de abertura da série norte-americana Twin Peaks intitulada “Twin Peaks Theme”, composta pelo americano Angelo Badalamenti, porque tem a mesma dimensão dramática e intensa e o seu instrumental é bastante idêntico. Para além de cego, Charli relembra-nos como o amor pode ser egoísta, “When I met you, it was tragic / Chemistry something like magic / You were with somebody else long term / And I was with somebody else as well” e rebelde, já que nos faz infringir qualquer lei, “I'm breakin' every rule for you / You're breakin' every rule for me”.

Segundo Charli, o tema “Twice” – será uma alusão a “Don’t Think Twice, It’s Alright” de Bob Dylan? – é sobre o apocalipse, o fim do mundo e vê-lo ao lado dos nossos amigos: “All the things I love are gonna leave me / One day, you're never gonna be there / I tell myself to take it easy / Don't think twice about it, baby / Up on the hill, we'll see it all end / Die happy thinking 'bout my best friends”. Não poderíamos pedir uma última faixa melhor para terminar Crash: afinal de contas, se todos colidimos mesmo, valerá a pena pensar duas vezes sobre isso? Charli diz-nos que não. O instrumental em “Twice” é talvez o mais curioso porque lembra Drake – e os seus beats – como se quisesse extraviar para o trap.

Na sua música e atitude, Charli subscreve a filosofia grega antiga de Heráclito que nos diz que nunca passamos pelo mesmo rio duas vezes: isto porque o rio não é o mesmo e nós também não, evidenciando como tudo está em permanente mudança e nada se mantém igual. É outro álbum imperdível de Charli XCX: vulnerável, contagiante e cheio de adrenalina. O que rejeitou desde True Romance, abraçou em Crash – e ninguém o esperava.

Catarina Fernandes

Este artigo foi realizado para a UC de Jornalismo Cultural no ano letivo de 2021/2022 pela autora.

Título do álbum: Crash Artista: Charli XCX Editora: Asylum/ Atlantic Records Artistas convidados/as: Caroline Polachek, Christine and The Queens, Rina Sawayama

Ano: 2022

Produção e Masterização: George Daniel A. G. Cook, , Deaton Chris Anthony, Digital Farm Animals, Ian Kirkpatrick, Justin Raisen, Sadpony, Ariel Rechtshaid, Daniel Lopatin, Mike Wise, Dopamine

Palavras-chave: “música pop”; “música alternativa”; “dance”; “art pop”; “hyperpop


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