top of page

Satyagraha: Gandhi e a busca pela Verdade ao som de Philip Glass

6f5c06b1-cb90-4b11-93e7-5450958e2fe4.jpg

No dia 16 de outubro de 2021, fui à ópera, algo que, infelizmente, não faço tanto quanto gostaria por um conjunto de razões, sendo uma das principais o pouco interesse pela oferta que é, por vezes, em Lisboa, tão pobre e reduzida. Contudo, encontrando-me em Londres, tive o enorme prazer de assistir a uma produção da ENO (English National Opera) e da companhia teatral Improbable, com coprodução da Metropolitan Opera de Nova Iorque, no London Colyseum, um teatro público inaugurado em 1904 com o intuito de proporcionar às famílias londrinas de classe média uma experiência a que, à época, simplesmente não tinham acesso.

A ópera em causa intitula-se “Satyagraha”, que significa “busca pela [graha] Verdade [Satya]”, e foi composta pelo compositor e pianista Philip Glass, em 1979. Trata-se de uma peça altamente minimalista de cerca de três horas, dividida em três atos, e cujo efetivo é constituído por duas sopranos, duas mezzo-sopranos, dois tenores, um barítono e dois baixos, coro e orquestra de cordas e madeiras.

“Satyagraha” baseia-se na (e presta homenagem à) vida de Mahatma Gandhi. Mais especificamente, esta ópera foca-se nos 21 anos que o líder nascido em 1869 passou na África do Sul (1893-1914), inicialmente enquanto advogado (tinha estudado na University of London) e, mais tarde, enquanto o ativista que hoje associamos à sua figura e ao seu nome, praticando a não-resistência (afinal, Gandhi assumia-se como um discípulo de Lév Tolstoy, com quem trocou correspondência até 1910, ano da morte do escritor russo). Para além disso, “Satyagraha” incide também sobre o período posterior da sua vida, passado na Índia, bem como a influência que o seu movimento teve em figuras como Martin Luther King Jr. no contexto da luta pelos direitos civis e humanos. O libreto (também ele minimalista e sem um enredo propriamente dito), elaborado pelo próprio Glass em colaboração com Constance DeJong, apresenta-se integralmente em sânscrito (sem legendas de qualquer tipo, no caso desta produção) e, baseando-se na Shrimad Bhagavad Gita, uma das principais Escrituras Sagradas do Hinduísmo, que Gandhi frequentemente citava, anda em redor de apenas quatro personagens: o próprio Gandhi e três dos seus principais amigos, colegas e camaradas dos seus tempos na África do Sul – Sonja Schlesin, Hermann Kallenbach e Parsi Rustomji.

Musicalmente, estamos perante uma peça minimalista, como já foi referido, e tal significa que o leque de material musical utilizado pelo compositor é extremamente reduzido. À semelhança de Gandhi, que abdicou de todos os seus bens materiais e da sua vida enquanto advogado e cidadão indiano sujeito à lei do mercantilista e opressor império britânico, contra a qual lutou pacífica, porém ativamente, durante muitos anos, também Philip Glass parece ter-se despido de tudo quanto, na música da tradição escrita ocidental, parece dar “interesse” à música. Contudo, o modo como esta ópera (ou seja, o conteúdo musical) se relaciona com o enredo e com a atuação (ou seja, o conteúdo teatral coreografado) dificilmente poderia ser mais interessante e bem-sucedido. Por um lado, o compositor não cai em certos clichés como o uso de escalas microtonais e de texturas, ritmos e técnicas de improvisação típicos da música Hindustânica (tradição clássica do norte da Índia), como muitos outros compositores decerto fariam, de modo a criar o ambiente exótico, místico e contemplativo que a peça e a própria Índia parecem evocar: Glass mantém-se sempre muito contido, e sempre dentro da escala diatónica que nós, ocidentais, usamos há mais de mil anos. Cada ato parece ter entre um a três temas relacionados entre si e com os dos outros atos (por “tema” refiro-me a melodias, ritmos ou algum elemento musical característico que capte a atenção do ouvinte e que assuma um papel central no contexto em que se insere). Geralmente, estes temas repetem-se durante o ato inteiro (sendo que cada ato tem cerca de uma hora), sempre andando em redor exatamente das mesmas escalas, arpejos, acordes e progressões de acordes, sendo que o que distingue diferentes momentos da peça é o modo como este pequeno leque de materiais é explorado. Em “Satyagraha”, as madeiras assumem um papel central, especialmente a flauta transversal, assim como o coro que, tirando momentos-chave como os solos de Sonja Schlesin no segundo ato e o do próprio Gandhi no terceiro ato, se apresenta com harmonias muito simples e pouco ornamentadas, havendo inclusive momentos frequentes em que duas ou mesmo três vozes cantam em uníssono.

O cenário, note-se, também não escapa ao minimalismo conceptual por detrás de todos os aspetos desta produção: o palco, muito grande e fundo, foi dividido num semicírculo delimitado por grandes paredes metálicas de chapa ondulada, o chão foi integralmente revestido a folhas de jornais, simbolizando um importante ponto da vida de Gandhi (afinal, foi através dos artigos escritos em jornais criados por si, tais como o Young India e o Indian Opinion, que veio a reforçar a sua posição enquanto líder ideológico da resistência à opressão britânica) e, por vezes, pequenos buracos com a forma de portas e janelas eram abertos na chapa metálica de modo a acomodar novas ou a facilitar o trânsito entre personagens. Entre atos, o cenário não muda e não se pode dizer com grande segurança que, ao contrário das óperas italianas ou francesas, barrocas, clássicas ou românticas, esta tenha de facto diferentes cenas em cada ato (pela mesma razão: o cenário não muda!); assim sendo, apenas em números musicais podemos dividir a ópera com relativa segurança (números esses cujas subtis transições notamos devido a pequenos silêncios e/ou mudanças de material temático musical). Neste palco, ao contrário do que se passa no fosso da orquestra conduzida pela maestrina chino-americana Carolyn Kuan, tudo parece acontecer mais lentamente: as personagens (por sua vez, muito poucas) movem-se muito lentamente, não há qualquer dança nem ação propriamente dita (com exceção de uma ou duas cenas – porém, no que toca a, nomeadamente, a localização das personagens no palco, a ópera estava magistralmente coreografada), e este aparente estado contemplativo, místico e passivo (como referido, não há enredo, os eventos são apenas sugeridos ou evocados) anda de braços dados com a música de maneira sublime.

No primeiro ato, dedicado a Tolstoy (como se percebe por frases e citações projetadas no fundo do palco, bem como pela figura de Tolstoy, que aparece escrevendo), Gandhi surge como um jovem advogado, à época na África do Sul, que começa a questionar a sua posição enquanto membro abastado de uma sociedade que ele vê como injusta, anacrónica, explorada, oprimida, e que ele acredita poder ajudar a mudar. Indeciso em relação a se há ou não de abdicar da sua vida (material mas não só – deixaria de ser advogado e, mais do que isso, deixaria de ser cidadão do império britânico e do seu próprio país), Gandhi reza a Krishna, cujo azul simbólico vemos espalhado pelo palco em diversas formas, e conversa com Kallenbach, que o motiva a seguir esse caminho e a “dizer os votos”, que formalizam a sua dedicação a esta iniciativa. Neste ato, os violoncelos assumem um papel central, surgindo com um padrão constituído por uma progressão de quatro acordes muito vulgares no mundo da pop (de facto, trata-se da mesma progressão de “Hit The Road Jack”), porém arpejados lentamente. Isto repete-se durante o ato inteiro, em ostinato, com pequenas ou maiores variações (notas vão sendo adicionadas ou retiradas ao padrão de modo praticamente impercetível) e crescendos e diminuendos em termos de texturas orquestrais. Para além disso, este tema dos violoncelos, embora nunca deixe de estar presente, vai sendo alternado com um outro tema contrastante, porém de si derivado, que surge a certo ponto.

O segundo ato começa com Gandhi num barco de volta à Índia, onde um grupo de homens burgueses leem o jornal, objeto que assume um papel central nesta secção, representando o Indian Opinion (editado pela primeira vez em 1904). Gandhi é humilhado por este grupo, porém não reage com violência, mas antes com pacificidade, não-resistência e amor ao inimigo. Schlesin defende-o e o grupo de homens – que simboliza toda a resistência, opressão, racismo e xenofobia de que Gandhi e os seus seguidores terão sido vítimas ao longo da vida – retrai-se. Este ato é dedicado ao poeta, músico, escritor, dramaturgo, filósofo e amigo de Gandhi Rabindranath Tagore, que, tal como Tolstoy no ato anterior, aparece escrevendo. Completamente decididos a alterar o rumo da sua vida, Gandhi e os seus seguidores queimam os seus bilhetes de identidade, num ato não só de renegação simbólica para com o império britânico, mas também como ritual religioso: Shiva, deusa da destruição, a quem este ato é dirigido, representa o processo obrigatório de terminar o ciclo velho antes de um novo poder começar – neste sentido, o ato de queimar os bilhetes de identidade possibilita o início de uma nova vida; por outro lado, a presença do deus Ganesha durante este ato, segundo a velha superstição, dá sorte a Gandhi e aos seus seguidores. Musicalmente, o coro masculino no início do segundo ato apresenta um certo material temático que se repete inúmeras vezes ao longo da obra – falo da progressão de acordes, mas realço também a textura coral que faz lembrar o célebre momento da igualmente célebre ária “A Rainha da Noite”, d’A Flauta Mágica de Mozart, mas adaptado ao registo grave dos tenores, barítonos e baixos que constituem o coro masculino. Durante este Ato, Gandhi e os seus seguidores, amigos e camaradas já usam as vestes brancas que hoje são simbolicamente ligadas a este movimento, tratando-se de panos simples de algodão feitos à mão, em jeito de protesto dirigido à maneira como esse monopólio era gerido e explorado pelos britânicos.

Por fim, o terceiro ato é dedicado a Martin Luther King Jr., cuja figura vemos discursando numa tribuna, e nesta secção vemos uma reconstituição da “The Newcastle March” de 1913. Musicalmente, trata-se de um momento de novas e longas intervenções corais (coro pequeno constituído pelas quatro personagens principais e pela mulher de Gandhi), mas há que realçar o solo final de Sean Panikkar, o tenor que interpreta Mahatma Gandhi, que, verdadeiramente esplêndido, encerra a ópera em jeito de serena contemplação, senão mesmo de Nirvana. Neste ato, a música relembra-nos Benjamin Britten e Michael Nyman, e mais uma vez vemos as mesmas escalas, arpejos, acordes e progressões de acordes presentes ao longo dos outros dois atos, porém aqui tratadas de modo peculiar (por exemplo, pode tratar-se de um arpejo com mais uma nota do que antes, ou de uma escala que desce em cromatismos em vez de na sucessão de tons e meios-tons a que estamos habituados segundo a escala diatónica ocidental).

Em suma, recomendo a música, mas, acima de tudo, recomendo a ópera. A junção de som e imagem (a representação, o palco, a coreografia), no caso desta produção em particular, é verdadeiramente sublime. Fiquem atentos/as e, se a virem passar pelos teatros da vossa cidade, (sugiro que) comprem um bilhete!


Guilherme Santos

Produção: English National Opera e Improbable, com co-produção da Metropolitan Opera of New York Local e data: London Colyseum, récita do dia 16/10/2021 Maestrina: Carolyn Kuan Intérpretes principais: Sean Panikkar (Gandhi), William Thomas (Parsi Rustomji), Gabriella Cassidy (Sonja Schlesen), James Cleverton (Hermann Kallenbach)

Palavras-chave: “ópera”, “teatro musical”, “Gandhi”, “minimalismo”, “padrões”, “Índia”, “ativismo”.


CONTACTOS

  • Facebook
  • Instagram
  • YouTube
  • Spotify
Os textos, artigos e imagens publicados neste website são propriedade exclusiva dos seus autores.
Para citar qualquer um dos elementos referidos dever-se-á indicar o nome do/a autor/a, o título do texto e de qualquer outro elemento, e referir o nome do website onde se integram.
A cópia, modificação, reprodução, distribuição ou outro uso desses elementos é interdita, salvo autorização expressa dos respetivos autores.
logo_final-removebg-preview_edited.png

Faz parte deste projeto enviando-nos uma mensagem!

Obrigado!

Obrigado pelo envio!

bottom of page