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O que há entre nós e as palavras?

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“(…) [há] palavras que nos sobem ilegíveis à boca palavras diamantes palavras nunca escritas palavras impossíveis de escrever por não termos connosco cordas de violinos nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar”

Mário Cesariny Entre nós e as Palavras (fragmento)

Em setembro de 1997, foi lançado o disco “Entre Nós e as Palavras”, da autoria d’Os Poetas, um projeto de Rodrigo Leão, Gabriel Gomes, Margarida Araújo e Francisco Ribeiro. Partindo de gravações dos poetas Al Berto, António Franco Alexandre, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge e Mário Cesariny a recitarem os seus próprios poemas, Gabriel Gomes e Rodrigo Leão compuseram dezasseis faixas para acordeão, violoncelo, viola e teclas, onde a poesia tem um lugar especial. Dei por mim à procura de motivos, circunstâncias, para escrever sobre este álbum. Pareceu-me imperativo e, nas linhas que se seguem, procurarei escrever sobre alguns dos minutos que mais gosto.

Este disco inicia-se com “A Magnólia”: ouvimos a voz de Luiza Neto Jorge a declamar o poema que dá nome a esta faixa e ouvimos também uma melodia labiríntica, que nos envolve e prenuncia este álbum como incontornável na música portuguesa. Quando o som se extingue, principia-se “No Sorriso Louco das Mães”, onde o acordeão e o violoncelo são, em momentos diferentes, solistas. Há pequenas pausas, extasiantes, terminações que nos surpreendem e instala-se um ambiente calmo e sério. E o tom de Herberto Helder coaduna-se com a música: não é um tom melancólico nem emocionado, é solene e quase inexpressivo, o que acaba por dar outra força a esta leitura do autor do poema. Parece que descreve um quadro do qual não faz parte ou um filme no qual não entra. O tom é próprio de quem enuncia verdades simples e universais e vai descrevendo, ao longo do poema, como são as mães, como são os filhos e como é o seu amor.

O álbum evolui, ganha intensidade e seguem-se minutos preciosos. Chamo particular atenção para “O Café dos Poetas”, uma faixa instrumental do álbum, que se segue à audição de Mário Cesariny a declamar o icónico poema “Pastelaria” e que realça a mestria da composição de Rodrigo Leão e Gabriel Gomes. O mesmo se pode dizer sobre a faixa “Eu Vi Um Anão Inglês”, cujo título é uma alusão ao poema "Shaftesbury Avenue", de Mário Cesariny. Esta música opõe duas secções, ambas delicadamente geniais. Uma delas é marcada por um ostinato, iniciado pelas cordas e continuado pelo acordeão, que serve de base para a melodia. Na outra secção, a harmonia feita pelas cordas envolve uma suave melodia tocada pelo acordeão. A mudança de secções é repentina, mas articulada, e o ostinato retorna várias vezes, como uma memória antiga que insiste em regressar.

Segue-se, de imediato, “Há Uma Hora, Há Uma Hora Certa”, onde ouvimos a voz de Cesariny a declamar uma parte do seu poema homónimo e uma música iminentemente dinâmica. Percebemos que esta é a banda sonora das nossas manhãs apressadas, do nosso quotidiano, da vida urbana, das ruas e das pessoas, das situações rotineiras que são olvidadas. A harmonia ritmicamente marcada, que nos envolve, conjuga-se com uma melodia no acordeão, uma melodia que podíamos ser nós, nós e as nossas palavras, nós e os nossos gestos apressados numa manhã qualquer.

Neste álbum, torna-se difícil escolher o pedacinho mais bonito, a nota que mais arrepia ou a palavra que fica a soar. Mas “Minha Cabeça Estremece” é, talvez, a minha faixa preferida. Começa com o som das cordas, que asseguram o acompanhamento, e o acordeão e, mais tarde, o violoncelo assumem o papel de instrumentos solistas. Ouvimos, depois, pela voz de Herberto Helder, palavras duras e reflexivas sobre lembrança e esquecimento. Não percebemos se as cordas acompanham os instrumentos solistas ou a voz do poeta. E essa ambiguidade é linda.

A faixa seguinte denomina-se “Há-De Flutuar Uma Cidade No Crepúsculo Da Vida”. Nesta faixa, ouvimos Al Berto a declamar um dos seus poemas e o som de um violoncelo. O sujeito poético sente-se só, com a sua “pérola solitária” e o violoncelo toca sozinho, também melancólico e consciente da sua solidão. É uma faixa pesada e triste, que nos faz pensar.

Este álbum espelha uma relação algo atípica entre a música e a poesia: Rodrigo Leão, Gabriel Gomes, Margarida Araújo e Francisco Ribeiro libertam a música do peso das palavras, da responsabilidade de as ilustrar e de estar por detrás de um sentido. Por um lado, com exceção da faixa “Quem Me Dera (Amanhã)”, as palavras são sempre faladas e não cantadas, o que oferece à música mais liberdade, em termos melódicos e harmónicos. Por outro lado, a poesia surrealista, que não cabe dentro de uma narrativa linear, ajuda a música a desenvolver-se de uma maneira autónoma neste projeto: ao libertar-se da função de ilustrar objetos, situações ou emoções, visto que a poesia surrealista não se quer ilustrada, a música procura criar ambientes sonoros, que, de acordo com os critérios estéticos de quem compõe, sejam compatíveis com as sensações ou ideias despertadas pelos versos.

Em “Entre Nós e as Palavras”, a música insurge-se e recusa-se a submeter-se às palavras e ao seu significado, não é um elemento subalterno e, por isso, a música e a poesia ficam em pé de igualdade, como elementos que convivem e que se influenciam, mas que são autónomos. De facto, em muitas das faixas, a música poderia ser ouvida sem a poesia e não a sentiríamos incompleta, apesar de que, quando juntamos as vozes dos poetas, notamos uma complementaridade muito harmoniosa. Neste álbum, a música e a poesia complementam-se, mas preservam a sua autonomia. E esta nova autonomia permite a criação de algo diferente.

“Entre Nós e as Palavras” é uma obra una, um todo indivisível, onde música e poesia, como que por acaso, se encontram ou não: há momentos em que ouvimos apenas música instrumental, outros em que a voz de Cesariny ecoa isolada, outros em que a música e a poesia se complementam, num jogo sonoro. É um álbum para ouvir do início ao fim, nas horas que vagam num final de tarde. É um álbum que requer a nossa maior atenção. Não é música de fundo, não são poemas que se ouvem distraidamente: é uma obra absorvente que nos faz sentir pequenos perante a imensidão de tanta beleza, de tanta criatividade, e que nos relembra das coisas que valem a pena na vida. É uma experiência. É daqueles álbuns que guardamos no lugar privilegiado da nossa estante ou que é o primeiro a sair da gaveta, mas que propositadamente guardamos para momentos especiais, que racionamos como se a rotina, “a espuma dos dias”, não fosse disso merecedora.

Aconselho cada faixa, cada minuto e quase todos os segundos. “Entre Nós e as Palavras” é um doce presente para amantes de música e para amantes de poesia e um verdadeiro tesouro para quem tem paixão por ambas.

Sara Cal

Título: Entre Nós e as Palavras Autores: Os Poetas (Rodrigo Leão, Gabriel Gomes, Margarida Araújo, Francisco Ribeiro) Edição e ano: Sony Music, 1997 Produção: Gabriel Gomes e Rodrigo Leão Gravações e Misturas: António Pinheiro da Silva e Paulo Abelho Assistência Técnica: José Motor, Vasco e Carlos Jorge Alves Pós-produção: António Pinheiro da Silva e João Moura

Palavras-chave: “Poesia”; “Surrealismo”; “Música Portuguesa”.

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