O papel da música em “Sonny’s Blues” de James Baldwin
O conto “Sonny’s Blues” foi escrito pelo norte-americano James Baldwin em 1957, para mais tarde ser inserido na sua coleção de contos intitulada “Going to Meet the Man”, em 1965. A ação passa-se em Nova Iorque, no bairro de Harlem, nos anos 50. O conto fala-nos sobre a história da personagem Sonny e sobre a sua relação com o seu irmão mais velho, o narrador, cujo nome nunca chegamos a conhecer. No início do conto, o irmão mais velho lê no jornal a notícia de que Sonny havia sido apanhado pela polícia por contrabando e consumo de heroína – a perturbadora notícia é o ponto de partida para a progressão do conto. Através de várias estratégias narrativas, o leitor vai acompanhar a mudança na relação entre os irmãos, que viviam em diferentes cidades na altura e que, durante a infância e adolescência, haviam tido vários problemas de comunicação, para mais tarde testemunhar a transformação do irmão mais velho e da sua própria conceção depreciativa de Sonny e do mundo ao seu redor, outrora consumido pela escuridão (“darkness”). Para além de nos falar sobre a injustiça racial e a opressão que condenou a comunidade afro-americana – e que, infelizmente, ainda condena –, “Sonny’s Blues” é, no seu âmago, uma ode ao humanismo. Desde tenra idade, o sonho de Sonny era ser músico, algo que o seu irmão mais velho não compreendia:
«“What do you want to do?” I asked him. “I’m going to be a musician,” he said. For he had graduated, in the time I had been away, from dancing to the juke box to finding out who was playing what, and what they were doing with it, and he had bought himself a set of drums. “You mean, you want to be a drummer?”. I somehow had the feeling that being a drummer might be all right for other people but not for my brother Sonny. “I don’t think so,” he said, looking at me very gravely, “that I’ll ever be a good drummer. But I think I can play a piano.”» (p. 133-134)
A sua maior referência musical era Charlie Parker – conhecido por Bird ou Yardbird –, que, à semelhança de tantos outros músicos da época, consumia/utilizava drogas (inclusive heroína). A música do saxofonista norte-americano estava longe da tradição convencional do jazz até então, desafiando as normas e conceções sociais. O talento inconfundível de Parker, aliado à sua inovação no mundo da música e ao seu espírito livre, foram as principais razões que levaram Sonny a idolatrá-lo. Talvez por ver em Charlie Parker um reflexo de si mesmo e por aspirar a ser como o músico, Sonny confessa o seu sonho ao irmão: «“I don’t want to be a classical pianist. That isn’t what interests me. I mean” – he paused, looking hard at me, as though his eyes would help me to understand, and then gestured helplessly, as though perhaps his hand would help – “I mean, I’ll have a lot of studying to do, and I’ll have to study everything, but, I mean, I want to play with – jazz musicians.” He stopped. “I want to play jazz,” he said.» (p. 134)
O sonho de Sonny foi, efetivamente, concretizado, pelo seu esforço e dedicação, no processo até à sobriedade. O leitor chega ao momento final do conto e não resiste a ficar extasiado pela descrição da atuação de Sonny ao piano, acompanhado pelos seus amigos e companheiros de banda. As últimas páginas de “Sonny’s Blues” levam-nos a um clube noturno, “(…) the only nightclub on a short, dark street, downtown.” (p. 145), onde seria o concerto de Sonny para o qual o seu irmão mais velho foi convidado pela primeira vez. Antes de o ouvir tocar, o irmão de Sonny reflete sobre a importância da música e o papel do compositor/músico:
«All I know about music is that not many people ever really hear it. And even then, on the rare occasions when something opens within, and the music enters, what we mainly hear, or hear corroborated, are personal, private, vanishing emotions. But the man who creates the music is hearing something else, is dealing with the roar rising from the void and imposing order on it as it hits the air. What is evoked in him, then, is of another order, more terrible because it has no words, and triumphant, too, for that same reason. And his triumph, when he triumphs, is ours. I just watched Sonny's face.» (p. 146)
Mais tarde, no momento em que Sonny começa a tocar, o seu irmão ouve-o. O verbo ouvir (“to listen”/”to hear”) é utilizado variadas vezes ao longo do conto para demonstrar a falha de comunicação entre os irmãos, «“Sonny. You hear me?” He pulled away. “I hear you. But you never hear anything I say.”» (p. 137); a conexão emocional que permite ao narrador realmente ouvir o seu irmão é desencadeada pela música e não pela linguagem verbal. Foi graças à música – ao tema Am I Blue, tocado ao piano por Sonny – que o narrador, outrora angustiado e consumido pela escuridão, foi capaz de ouvir o seu irmão e, consequentemente, ouvir-se a si mesmo, tornando a sua visão e conceção do mundo mais luminosa. O poder da música no conto de Baldwin é extremamente comovente: ao ouvir o seu irmão tocar, o narrador compreendeu a importância que reside em escutar o outro: «For, while the tale of how we suffer, and how we are delighted, and how we may triumph is never new, it always must be heard. There isn’t any other tale to tell, it’s the only light we’ve got in all this darkness.» (p. 147). A realidade norte-americana dos anos 50 pode, à primeira vista, parecer completamente distante da nossa realidade contemporânea europeia. No entanto, existe uma particularidade intemporal e sem barreiras culturais: a música como meio de união. É através do outro e da sua entrega musical que as personagens do conto puderam, finalmente, ver a luz. A luz, em oposição à escuridão que paira nas suas vidas, assumiu um simbolismo mítico. A experiência do concerto é comparada a uma experência religiosa em que todos os envolvidos, músicos e espetadores, partilham o mesmo sentimento de comunhão, fraternidade e possibilidade de iluminação. A questão da luz e do tom indigo que preenche a sala do clube é extremamente interessante. Na teoria literária, o tom indigo está associado à intuição, algo que parece reger grande parte dos músicos jazz; a iluminação aparece como uma metáfora que parece simbolizar o papel transcendente da música em tempos turbulentos. Para Sonny, a música representava a liberdade, mesmo que por breves instantes, no momento em que tocava: «Freedom lurked around us and I understood, at last, that he could help us to be free if we would listen, that he would never be free until we did. » (p. 148). Assim, o elemento primordial para o desenlace da narrativa, para a revelação do talento de Sonny e para o reencontro emocional entre os irmãos é, justamente, a música: «I heard what he had gone through and would continue to go through until he came to rest in earth. He had made it his-, that long line, of which we knew only Mama and Daddy. And he has giving it back, as everything must be given back, so that, passing through death, it can live forever.» (p. 148).
Se, na tradição literária da Grécia Antiga, personagens como Palas Atena orientam, através da sua sabedoria, o caminho dos seus heróis para que estes ultrapassem os seus obstáculos, em contos modernos como “Sonny’s Blues” podemos ver como a música tem a capacidade de iluminar o nosso caminho e de nos libertar. A leitura do conto completo é obrigatória para qualquer melómano que se queira deliciar pela genial narrativa de Baldwin.
Catarina Fernandes
Titulo do conto: “Sonny’s Blues” Escritor: James Baldwin Ano: 1957
Acesso online para ler o conto completo em SonnysBlues.Baldwin.pdf (uwm.edu)
Palavras-chave: “música”; “literatura”; “James Baldwin”; “Sonny’s Blues”; "jazz"; “Charlie Parker”.