Do not go gentle
O poema, ou vilanela, “Do not go gentle into that good night”, escrito por Dylan Thomas - haverá arquétipo mais representativo do imaginário romântico da cultura popular americana da primeira metade do século XX? - em 1947, é possivelmente uma das mais belas celebrações da vida que já ouvi. Só não digo a mais bela porque este foi, precisamente, o mote para a música homónima de John Cale. Escrita e executada na íntegra por este notável músico (pese embora a versão orquestrada, não posso deixar de sentir uma preferência pela versão mais intimista do álbum Fragments of a Rainy Season), esta faixa captura e cristaliza a lírica solitária, escura e apaixonada que conduz todo o supramencionado disco; assume-se, talvez, como a coroa de um álbum que arrisco dizer ser o melhor de toda a sua carreira pós-Velvet Underground (e atenção que este álbum, gravado ao vivo em 1992, incorpora interpretações veneráveis de “Hallelujah” e de outros dois poemas do mesmíssimo Dylan Thomas).
A faixa começa com um prelúdio curto do piano (instrumento de eleição de Cale), com um balanço quasi-pop que introduz desde logo um toque de esperança na forma de um ostinato, contrastando com um tema que prenuncia aridez. A voz do artista sobrepõe-se, com um apelo (com o apelo) - “Do not go gentle into that good night”. Restassem dúvidas quanto à sua interpretação, rapidamente se desvanecem: “Old age should burn and rave at close of day”. E será esta a metáfora (e este ritmo) a guiar os próximos três minutos de melodia e (des)harmonia. Em simultâneo elegante e áspera (ao estilo, por excelência, de Cale), é uma quase-balada, um quase-motete. Na verdade, desisto de a classificar. Sei é que a conjugação de ritmo, harmonia, letra, e mesmo dicção é verdadeiramente sublime.
Pontuada por momentos quase de êxtase, que suspendem instantaneamente a narrativa melódica e rítmica, forças motrizes de um andamento imparável que demarca toda a peça (não tratasse esta a inevitabilidade do fim de cada dia), o interlocutor repete incessantemente um apelo à vida, arrebatando quaisquer argumentos que a ele se possam opor: “Though wise men at their end know dark is right, / Because their words had forked no lightning they / Do not go gentle (…)”; “Good men, the last wave by, crying how bright / Their frail deeds might have danced in a green bay”; “Wild men who caught and sang the sun in flight, / And learn, too late, they grieved it on its way,”; “Grave men, near death, who see with blinding sight / Blind eyes could blaze like meteors and be gay”. Cada estrofe é separada por interlúdios que recuperam o padrão inicialmente proposto, que se vai desenvolvendo numa dança cheia de esperança, mas marcada pela crescente dissonância do baixo. E cada insistência apenas confere mais força a este hino. Mas é só na última estrofe que percebemos a preocupação do sujeito poético [“And you, my father, there on the sad height, / Curse, bless, me now with your fierce tears, (…)”]. Esta revelação quase reverte o crescendo que se tem vindo a sentir até aqui - a urgência na sua voz é palpável e profundamente comovente. Quantos de nós não nos sentimos já em semelhante situação, mas incapazes de o verbalizar?
A secção final, de caráter puramente instrumental, assumidamente sombrio e pesado, vai inexoravelmente subindo no registo do teclado e culmina com a repetição enfática, quase solene, da escura quarta perfeita Dó-Fá - será meramente uma exaltação, por mais épica e corajosa que possa ser, da perseverança? Não. Também já não é um apelo. É uma ordem: “Rage, rage against the dying of the light!”.
Mas será o suficiente?
Thomas Childs
(Versão referida no texto, presente também no YouTube) https://youtu.be/42JTU4vuyEg