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“Ode Marítima”: breves notas sobre um espetáculo

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Fotografia retirada do website do Jornal de Mafra

A “Ode Marítima” de Álvaro de Campos foi publicada em 1915 no nº 2 da revista Orpheu e, desde então, inúmeras leituras deste poema têm sido feitas: vários homens e mulheres têm feito diferentes interpretações e atribuído diferentes ritmos, intenções e entoações aos vários versos deste poema. No dia 9 de outubro, assisti, no Teatro Ibérico, a um espetáculo produzido pela Companhia João Garcia Miguel, onde ouvimos o ator que dá nome à companhia a recitar a “Ode Marítima” e, em simultâneo, música do grupo Danças Ocultas.

Este encontro improvável entre João Garcia Miguel e o quarteto de concertinas formado em 1989, constituído por Artur Fernandes, Filipe Cal, Filipe Ricardo e Francisco Miguel, oferece-nos uma experiência diferente daquilo a que estamos acostumados: de facto, não se trata de uma leitura convencional de um poema e também não é um concerto convencional. Procurando dar um “novo sentido ao imaginário dos espetadores”1, esta peça conjuga a poesia de Álvaro de Campos e a música de Danças Ocultas de forma exímia e muito orgânica.

O espetáculo iniciou-se com o som do vento, que, suave, encheu a bela sala de espetáculos do Teatro Ibérico. Ao extinguir-se, deu lugar à música “Escalada” e foi-se criando na sala um ambiente muito próprio, que, juntamente com os versos recitados por João Garcia Miguel, me remeteu, quase de imediato, para um ambiente marítimo. Nesta música, que faz parte do álbum “Ar”, as vozes das concertinas entrelaçam-se para criar um ambiente quase onírico e muito belo. Uma suave melodia envolve-nos e envolve as palavras de João Miguel, que fluem como o paquete que vai entrando no cais. O seu discurso é preenchido sistematicamente com elementos marítimos: praias longínquas, mares, ilhas perdidas, o vapor dos navios, viagens, estreitos e golfos. Curiosamente, o último disco de Danças Ocultas, “Dentro Desse Mar”, é também construído em torno do tema marítimo. “Oniris”, uma música tocada já perto fim do espetáculo, é escolhida em representação deste álbum ritmado, gravado em 2018 no Rio de Janeiro e produzido por Jaques Morelenbaum. Com esta música, de uma beleza fora do comum, vem-nos à memória o Cais que incita o delírio marítimo de Álvaro de Campos: lembramo-nos do cais deserto e do cais “cheio de pouca gente”, imaginamos um cais de pedra visto de longe e de perto, este cais que é “uma saudade de pedra”, que é real, visível e absoluto.

Mas Álvaro de Campos não fala só das especiarias, de mar e de cabos; na verdade, fala sobre um pouco de tudo, sem filtros e sem critério, de uma maneira que nos parece quase aleatória. Para além do discurso que transparece o “delírio das coisas marítimas”, ouvimos versos sobre saudade e medo, sobre quem vai e sobre quem fica. Ouvimos nostálgicas palavras sobre uma infância que já lá vai e observações sobre o “antiquíssimo” grito inglês. Ouvimos também um elogio à civilização moderna: Campos descreve-nos uma Lisboa refletida na água do rio, mas também uma Lisboa industrial e maquinizada. As palavras ditas por João Garcia Miguel assemelham-se, no seu conjunto, a um turbilhão de pensamentos desorganizados e coerentes ao mesmo tempo e este monólogo é acompanhado por (e acompanha) temas dos sete álbuns de Danças Ocultas.

Ao longo do espetáculo, muitas vezes as palavras de Álvaro de Campos pintam no nosso imaginário situações de uma violência atroz: populações africanas saqueadas, torturadas, roubadas e mortas ou mães que veem os filhos a ser enforcados. De facto, ao contrário do louvor incessante aos Descobrimentos que Pessoa insiste em “Mensagem”, aqui encontramos uma visão mais negra deste período. É certamente uma versão mais sangrenta e, infelizmente, uma que se ouve menos e que tendemos a esquecer. Curiosamente, por vezes nessas descrições mais violentas, cria-se um contraste evidente entre o significado das palavras e a música: a música não acompanha a violência das palavras, aliás, parece seguir descontraidamente o seu rumo próprio, sem dar importância aos delírios de Álvaro de Campos, como que desvalorizando o peso das suas palavras. No entanto, há alturas em que o poema e a música parecem dizer exatamente a mesma coisa, da mesma maneira: crescem juntos, dançam juntos, ressentem-se e sofrem em conjunto. Um exemplo desta sintonia é quando a música “Tristes Europeus” é tocada. “Tristes Europeus” é uma música cheia de força, que cria uma tensão musical que não me é possível explicar, que é correspondida com um momento de grande euforia no texto.

Acaba por ser uma seleção muito interessante e nada convencional das músicas de Danças Ocultas, uma vez que o critério de seleção é diferente daquilo que costumam ser as preocupações habituais. Não são necessariamente as músicas mais ouvidas, nem as mais recentes, e foram simplesmente escolhidas por funcionarem bem com a poesia de Álvaro de Campos. O critério acaba por se afastar das típicas preocupações comerciais e focar-se num critério estético, sendo este a compatibilidade com outra forma de arte, o que torna esta sequência de músicas particularmente valiosa do ponto de vista artístico. Tanto “Tarab”, música que dá nome ao terceiro álbum deste grupo, quanto “Alchimie”, por exemplo, parecem encaixar na perfeição no ambiente que vai sendo criado pelos artistas. Estas músicas, que são autónomas enquanto objetos estéticos, quando ouvidas dão-nos a impressão de que poderiam ter sido compostas para este efeito. Não deixa de ser interessante como esta música que, tendo elementos da música tradicional portuguesa, a começar pelos próprios instrumentos, acaba por ser completamente oposta à música folclore e versátil ao ponto de funcionar por si só, mas também como acompanhante de poesia ou dança.

Mais tarde, quando li o poema em casa, verifiquei com espanto que em vários momentos do poema o ressoar do som das palavras na minha cabeça era acompanhado, de forma involuntária, por músicas de Danças Ocultas. E quase que ouvia na minha cabeça a voz de João Garcia Miguel. Danças Ocultas e João Garcia Miguel criaram uma associação que me fez tanto sentido que talvez certos versos do poema se tornem para sempre indissociáveis da música que outrora os acompanhou. É como uma espécie de sinestesia: criam-se associações entre o som das palavras, a música e as cores que surgem no nosso imaginário de forma involuntária.

O espetáculo tem cerca de 60 minutos e dá-nos a escolher, em cada momento, que sentido privilegiamos, onde param os nossos olhos, o que ouvem os nossos ouvidos. Apesar da estética sóbria – os cenários são negros, os músicos vestem-se de negro e apenas o manto azulado de João Garcia Miguel se destaca na escuridão –, é um espetáculo muito estimulante, que prende a atenção e que me fez lamentar não ter pelo menos mais um ouvido. O trabalho de luzes contribui também para a criação de um ambiente envolvente e de um espetáculo que nos faz sentir mais vivos e atentos.

Abaixo disponibilizamos uma gravação desta peça no Teatro Aveirense, mas não deixo de aconselhar, logicamente, que, se surgirem novas datas, se desloquem às salas de espetáculo, porque é uma peça muito rica, dos pontos de vista musical, interpretativo e poético, e que ganha muito quando experienciada ao vivo.


1 https://www.dn.pt/cultura/poesia-de-fernando-pessoa-sobe-ao-palco-ao-som-dos-acordeoes-14180878.html

Sara Madeira Cal



Produção: Companhia João Garcia Miguel

Local e data: Teatro Ibérico, 09/10/2021

Música: Danças Ocultas

Leitura e interpretação: João Garcia Miguel

Som: Nuno Rebocho

Luz: Alexandre Coelho


Palavras-chave: “Ode Marítima”; “Poesia”; “Álvaro de Campos”; “Fernando Pessoa”; “Concertina”; “Música portuguesa”.



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