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Cinco estações e cinco sentidos: música com crianças

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Imagem: Sérgio Ramos, 'As quatro estações', pintura em tinta acrílica sobre tela.

​ Sempre que o clima muda rapidamente, lembro-me das várias conversas com os meus avós. Ora aconteciam quando havia chuvas repentinas no verão, ora quando o calor surgia mais cedo, ou até mesmo durante qualquer dia em que de manhã estava a chover e depois aparecia um sol quente e, novamente, uma ameaça de chuva. Nestas conversas, ao recordarem-se começavam a falar das suas vivências, como a apanha das azeitonas durante o outono, que reunia a família nos olivais, ou a paisagem repleta de flores brancas nas copas das amendoeiras durante a primavera, que parecia neve, entre outras memórias. Enfim, para eles o tempo tinha-se tornado instável, assim como para todos nós.

Sabemos que há mais de um século que as alterações climáticas se fazem sentir no planeta, devido sobretudo à nossa presença, a fatores como o aumento demográfico e a exploração intensiva dos recursos – só para termos uma noção, a população mundial atingiu o primeiro milhão de milhões em 1850. Depois da segunda guerra, esse valor duplicou em cada 12-15 anos e, atualmente, está quase nos oito mil milhões de habitantes (o dobro desde a geração dos baby boomers) e com tendência a aumentar, consideravelmente, para os nove mil milhões em 2050. Apesar desta realidade, muito se tem feito. Graças ao ativismo dos movimentos ecológicos e ao investimento de entidades internacionais e dos governos, a educação tem incentivado o combate contra a inscícia dos hábitos de consumo e do desleixo para com a natureza. Nas escolas e universidades são discutidas as mudanças climáticas e, com o contributo da ciência e da tecnologia, são tomadas medidas para reduzir o agravamento do planeta; mesmo assim, há qualquer coisa que não continua bem.

Tal como os meus avós se recordavam das estações, eu também o fiz, mas desta vez o tempo parecia estar OK: e o que me avivou os sentidos foi a sessão criada e realizada por Carolina Gaspar. É uma atividade dedicada aos pequeninos do pré-escolar, dos 3 aos 6 anos, acompanhada pela música do compositor italiano Antonio Vivaldi (1678-1741) e do argentino Astor Piazzolla (1921-1992). Ambas as obras se referem às estações do ano; por um lado temos uma linguagem que obedece à permanência de contrastes e sequências musicais, próprio da época barroca (Le quattro stagioni), e por outro, uma assimilação de ritmos e sonoridades criam uma paisagem sonora da cidade de Buenos Aires (Estaciones Porteñas).

No início da sessão, o primeiro impacto das crianças dá-se com as caixas cinzentas (quatro para cada estação) e os instrumentos, como o piano de cauda e a harpa, que se situam atrás das caixas. Começam por surgir muitas perguntas, mas aproveitando esse interesse inquieto pelo que rodeia a sala, Carolina apresenta-lhes um novo instrumento, o tambor do oceano (ocean drum). É com ele que começa a canção do “Olá”, que é cantado por todos, enquanto o tambor é percutido. Depois, com os braços no ar, um forte "sshhh" enche a sala e o tambor passa a fazer o som das ondas, ou então, de acordo com alguns, o som dos trovões, das areias, ou melhor, das chuvas torrenciais. Todos reagem com interesse depois de serem reveladas algumas pistas sobre o que vai acontecer naquela atividade, sendo a primeira o nome «Vivaldi» e a segunda o nome «Piazzolla». Estes são os nomes que ora em fortíssimo "VIVALDI!", ora em pianíssimo "vivaldi", vão acompanhando a dinâmica da atividade durante as estações. Em primeiro começa o inverno de Vivaldi, com o staccato das cordas até à cadência, onde todos saltam no fortíssimo – achei interessante a exploração das dinâmicas para focar a atenção –; depois a caixa cinzenta entra "em cena" com a música de Piazzolla no fundo. Tal como referi, cada caixa está associada a uma estação do ano, mas também a um sentido: neste caso, a caixa do inverno está associada ao tato. Através deste sentido, todos tocam numa pequena caixa, retirada da caixa cinzenta, que contém gelo. Ao tocarem nela, apercebem-se imediatamente de que estão no inverno e, de seguida, Carolina convida-os a tocarem em instrumentos que soem como essa estação, como é o caso do pau de chuva, do tubo PVC e do tambor de mola para fazer os trovões.

Em segundo, a próxima caixa cinzenta vem ao som dos pássaros e traz consigo, novamente, uma pequena caixa com o cheiro das flores. Aqui dá-se um “piquenique” à volta de quatro tambores de tamanhos diferentes, onde salta a pergunta: porque é que os tambores têm sons diferentes? O som do Bandoneon anuncia a terceira caixa cinzenta, da qual saem folhas secas e um saco de pano. Utilizando a visão, todos observam Carolina a puxar e a atirar ao ar vários tules coloridos que, ao som da harpa, vão pousando no chão como se fossem folhas do outono a cair das árvores – neste momento, a sala fica em silêncio e apenas os olhos buliçosos se movem. A quarta caixa cinzenta vem dar à costa com o som das ondas do mar e das gaivotas. Através da audição, em roda, todos erguem um grande lenço redondo com faixas coloridas, parecido com uma tenda do circo. O exercício consiste em fazer subir e descer o grande lenço ao som das ondas. Por último, falta criar uma estação, ou melhor cozinhá-la, e só pode haver um(a) cozinheiro(a). A partir da caixa pequena, que contém gelo, é feito um forno para o cozinhado. Ao baú são adicionados os ingredientes das várias estações, como a flor, a folha seca e uma bola de praia. Depois de tudo bem misturado e mexido por todos em correria, é acrescentado o pó de prelimpimpim. De seguida, ao abrir o baú, no timing certo da música, é retirado um pequeno coração de madeira e é criada a estação do amor e da amizade.

A simplicidade da atividade fez-me pensar no uso da música como forma de compreensão, através da experimentação, concentração e sobretudo imaginação. O facto de todos terem assimilado que a quinta estação está presente nas outras estações, demonstra a sensibilidade e a capacidade que as crianças têm para entender as coisas mais simples e cruciais que a vida, naturalmente, coloca ao nosso dispor. Neste sentido, a criação e a educação artística têm sido um grande contributo para o desenvolvimento educacional, não só para as crianças, mas também para nós (os adultos), que nos esquecemos de estar dispostos a compreender o que nos rodeia de forma mais simples.

Miguel Alves

Fontes:

populationmatters.org unesco.org músicateatral.com


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