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Uma estrela musical que nunca o foi:
À procura de Sugar Man

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O artigo que vos trago hoje fala de um documentário cuja figura central desafiou, em todos os aspetos, a indústria musical, mesmo que não propositadamente. Sixto Rodriguez – o sexto filho de uma família pobre e numerosa –, com origens mexicanas e fisionomia que nos relembra a dos indígenas norte-americanos, nasceu no início dos anos 40, já nos EUA, em Detroit. Ganhava a vida com trabalhos de construção civil, fazendo todo o tipo de tarefas que fossem necessárias. Em simultâneo, tocava guitarra e musicava o que via. “Um espírito errante” vagueava a cidade que, já nos anos 70, era considerada fantasma. Absorvia o seu habitat, tornando-se um verdadeiro poeta da classe operária.

Neste documentário, é-nos então contada a história de como o seu primeiro álbum – “Cold Fact” (1970) – vem à superfície. No entanto, apesar de ter surgido, na época, toda uma equipa de produção que quis investir em Rodriguez, a verdade é que este acabou por nunca ter qualquer tipo de êxito. Porquê? A voz cativa, com um timbre muito peculiar. E as letras são cheias, preocupadas com o mundo. Terá sido azar? Terá sido o seu aspeto indígena e o nome que soava a tudo menos americano? A verdade é que se venderam números irrisórios do seu LP. Pelo menos nesta parte do mundo.

Porque o que torna esta história diferente de todas as outras é o facto de esta música ter viajado para outro lugar e aí ter tido um enorme sucesso. Esse lugar é a África do Sul. É então estabelecido, ao longo do documentário, um paralelo contínuo entre Detroit, local de origem de Sixto, e a Cidade do Cabo, local onde Rodriguez se tornou um ícone. Como chegou o disco até lá? É contado que uma americana, ao visitar o namorado, trouxe consigo o álbum – é apenas uma hipótese, pois não se sabe realmente como chegou a música de Rodriguez à África do Sul. O disco foi sendo copiado ilegalmente: perante o regime de discriminação racial, o Apartheid, não havia a mínima possibilidade de o passar na rádio ou comprá-lo de forma lícita. De facto, Rodriguez é visto como a figura do rebelde, do ícone hippie com letras que desafiavam o sistema (“Cause Papa don't allow no new ideas here” – diz um verso da canção “Inner City Blues”), ou que simplesmente incomodavam o regime, como “Sugar Man” (que aborda o tema das drogas, tema claramente desconfortável – “Silver magic ships you carry / Jumpers, coke, sweet Mary Jane”) ou “I Wonder” (que aborda o tema do sexo, igualmente incómodo – “I wonder how many times you had sex / I wonder do you know who'll be next”) – todas estas músicas circulavam clandestinamente, tão populares como um “Abbey Road” ou “Bridge Over Troubled Water”. “As letras quase que nos libertavam da opressão sentida”, diz-nos Craig Bartolomew-Strydom, jornalista musical. Rodriguez era um sopro de liberdade; uma inspiração contínua para os africâneres que se rebelavam contra o Apartheid. Rodriguez era tudo isto sem o saber: África do Sul vivia sob o manto da ditadura, sem contacto com o exterior. E o êxito deste cantor permaneceu enclausurado, como o próprio povo.

África do Sul nada sabia, portanto, sobre a figura de Rodriguez. Consequentemente, a mente humana, como é seu hábito, ajudou a criar uma certa efabulação: chega a circular a ideia que Sixto se tinha suicidado em palco. No entanto, certas figuras muito aficionadas de Rodriguez fizeram quase o papel de detetives musicais, tentando descobrir o que aconteceu a esta figura da qual, simplesmente, não se ouvia falar. Estavam, assim, à procura do homem que cantava o “Sugar Man”. À procura de Sugar Man. Esta procura, que parte da Cidade do Cabo, consegue, após vários anos de pesquisa, chegar a Detroit. Duas peças de um puzzle – estas duas cidades – muito separadas, começam a juntar-se, até que se unem na perfeição: Rodriguez é encontrado e contactado. A segunda parte do documentário dedica-se, então, a contar-nos o que fez, entretanto, este cantautor. Passados 40 anos, ficamos com a sensação de que o tempo não alterou em nada a postura que Rodriguez tinha para com a vida. Vivendo sempre de modo muito modesto, nunca deixou de ter uma posição ativa na sua comunidade, não deixando de querer ajudar os que via. É-nos também mostrado a sua vida familiar, e o modo como Sixto transmitia cultura às suas três filhas, da forma mais diversificada possível. Como nos diz uma das filhas, Sandra Rodriguez: “[Detroit] é uma cidade que te diz para não sonhar alto, não esperar muito. Mas ele levava-me a certos lugares que eram só de elite. Ensinou-me que posso ir onde quiser (...). É o tipo de pessoa que ele é”. Foi dando-lhes esta cultura que as filhas passaram a viver para lá da cidade, podendo de facto sonhar mais alto.

O puzzle do documentário completa-se quando Rodriguez vai à cidade do Cabo, a 2 de março de 1998. Quatro dias mais tarde, apresenta-se em público e tem diante de si uma audiência proporcional ao tamanho de um estádio – Rodriguez era uma verdadeira estrela, com 10 minutos de aplausos em pé antes de poder começar a cantar. Conseguimos respirar o êxtase da audiência, e não nos admiramos quando nos é dito que esgotou seis concertos, e voltou a África do Sul quatro vezes. “Obrigado por me manterem vivo”, disse ao público. De facto, a sua música nunca morreu, sempre ali esteve. E Sixto, ao confrontar-se com isto mesmo, permanece sereno, como se tivesse chegado ao lugar onde nunca deixou de pertencer. “Ali estava um tipo que vivia do outro lado do planeta e é como se tivesse encontrado a sua casa”.

Uma vez mais, não nos surpreendemos quando, no final, nos é revelado que Sixto doou o dinheiro dos concertos e continuou a morar sempre na mesma casa, em Detroit, voltando a viver como sempre viveu: de modo modesto.

Aquilo que parecia uma busca por um homem do qual nada se sabia acaba por nos revelar um artista incomparável. Acabamos de ver o documentário e encontramos um homem que transformava a miséria com a qual convivia em canções. Uma estrela musical que nunca o foi. Um artista que cresce num ambiente de opressão, mas que hoje é cantado e admirado em liberdade, tendo o reconhecimento que merece.

Sara Maia


Palavras-chave: "documentário", "Sugar Man", "Detroit", "Cidade do Cabo", "Apartheid".


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