Eu estou à vossa disposição, como estarei sempre
“Eu estou à vossa disposição, como estarei sempre, para tudo o que seja situações de rutura, situações de combate, situações de denúncia daquilo que é injusto neste país” – é com esta frase de Zeca Afonso que se inicia o documentário “Traz outro amigo também”, orientado por Nuno Galopim e Miguel Pimenta e transmitido na RTP 1, no passado dia 2 de agosto. É com esta frase, representativa da postura que Zeca tinha para com o seu público, que inicio este artigo. Escrevo-o como um tributo ao documentário, aos que o conceberam, e, em última instância, como um tributo ao próprio Zeca, que ainda vive (e cada vez mais revive) na nossa música popular.
Para a juventude de hoje, é pouco habitual ouvir a voz de Zeca falada. Neste sentido, a voz de fundo, sendo, maioritariamente, a do próprio, é reconfortante, como se ouvíssemos a sua história de vida pela primeira vez. E é, de facto, uma primeira vez, pois um testemunho em primeira mão é insubstituível.
O documentário faz um uso muito ilustrativo da música de Zeca Afonso: pequenos capítulos são divididos pelas próprias canções: começamos por ouvir o fado coimbrense, e, à medida que os anos avançam, as canções marcam uma nova secção do documentário.
Realcemos, então, algumas secções do documentário, que valem a pena mencionar. Inicialmente, revisitamos a infância e juventude de José Afonso, entre Aveiro, terras angolanas e, mais tarde, Coimbra. A sua relação com a sociedade estudantil marcou-o de forma determinante, tanto no modo de cantar (particularmente na fase inicial), como também n’ “uma certa atitude perante a vida, uma certa rejeição para a hierarquia”, como nos diz. E é a partir desse mesmo ambiente estudantil e da crescente consciência em relação à injustiça da guerra colonial que somos puxados para esta emergência de um novo estilo de música popular: Zeca precisava de denunciar esta mesma injustiça, aliada a uma necessidade de renovar a sua criação como artista. E assim surge “Menino do Bairro Negro” e “Os Vampiros”.
Após os primeiros dez minutos do documentário, Zeca conta-nos como a sua profissão de professor, saltando de terra em terra e passando até por Moçambique, abriu os seus horizontes: “Sou um pouco filho de África, de Coimbra também e um pouco da Beira” – é também por este cruzar de influências que a sua música acaba por ser tão rica. Zeca demarcava-se claramente, a partir da década de 60, da música ligeira e do fado da época, que Sérgio Godinho, um jovem na altura, referia-se a este como enfático, sem um determinado tipo de energia que a música do Zeca já transmitia. No entanto, não eram simplesmente as melodias e o acompanhamento instrumental que cativavam. Foram também as palavras que nos foram prendendo ao Zeca – “a música acompanhava um ato real de contestação” perante o regime salazarista: a música de intervenção tinha uma urgência de denúncia, nascendo assim “A Morte saiu à rua”, referindo-se ao assassínio de José Dias Coelho, ou o “Cantar Alentejano”, sobre Catarina Eufémia.
Uma outra secção do documentário dedica-se ao mundo da gravação, nomeadamente no período pré 25 de abril. Pela censura que se vivia no nosso país, só era possível gravar no estrangeiro, nomeadamente em Paris. Assistimos ao início de certas gravações das canções e à importância de José Mário Branco, a partir de 1970: não fazia arranjos, fazia, como diz o próprio, “encenações sonoras” – que captassem, no fundo, a energia que era transmitida ao vivo. É assim que nasce o Cantigas do Maio (1971).
A linguagem metafórica e retorcida que era expressa nas canções dá lugar a uma expressão em liberdade. O momento que assinala a segunda parte do documentário é, sem dúvida, as míticas imagens da madrugada e do dia 25 de abril de 1974. À medida que ouvimos a senha “Grândola Vila Morena”, somos atolados pelas imagens das ruas, repletas de gente, e da libertação dos presos políticos. O documentário, pelo modo extraordinário como foi concebido, imerge-nos nesta madrugada que se esperava, e “onde livres habitamos a substância do tempo”, como disse Sophia. O contexto da canção ultrapassou completamente o autor, ganhando um significado nunca sonhado; por outro lado, é neste momento que o próprio Zeca se apercebe que o seu trabalho como cantor de intervenção tinha uma consequência real. A Grândola era cantada em coletividades populares, nas cooperativas que se formavam na altura, e estimulava, de um modo intenso e muito próprio da música, o sentido de unidade como grupo.
“O cantor não tem uma função destacada, tem uma função ligada a esforços coletivos. Se assim não fosse, o cantor não servia para nada (...). E é isto que nós fazemos.” Segue-se uma parte do documentário em que conhecemos o Zeca político: um homem que ajudou a fazer a revolução na prática, nas ruas, no nascimento de escolas e diversos projetos sociais. Como o mesmo dizia: “Não é preciso sermos doutores para nos politizarmos” – de facto, Zeca, que nunca se vinculou a nenhum partido, lutava para que a política fosse algo próximo, com uma intervenção prática na nossa vida quotidiana.
A penúltima parte do documentário inicia-se com imagens do Zeca a cantar, no seu último concerto, no emblemático Coliseu dos Recreios, a “Balada de Outono”. Ouvimos os seguintes versos “Ó ribeiras chorai / Que eu não volto a cantar”: Zeca sabia-o, todo o público o sabia, que esta figura nunca mais voltaria aos palcos. Esta última secção centra-se então na progressiva degradação do estado de saúde de Zeca, que tantos de nós acompanharam com pesar. Aos poucos, pelo avançar da doença neurológica, Zeca deixou de poder fazer aquilo que para ele tinha mais significado: deslocar-se aos locais e falar com a população, cantando em todas as partes do país e tendo um impacto direto na vida das pessoas. O funeral do Zeca Afonso acaba por se realizar 24 de fevereiro de 1987. Somos assolados por um conjunto de imagens do mesmo, enquanto se ouve a “Canção de Embalar”. Assim, como um contínuo lamento, vemos como a população se despedia. Os cravos e o choro são a paisagem destas longas imagens perdidas no tempo. Esta personalidade simples, com um gosto genuíno de ajudar e construir um futuro melhor, marcara profundamente o povo português.
Não sobram dúvidas da importância de Zeca na história da nossa cultura, influenciando, irremediavelmente, o panorama musical português. As suas músicas passaram diretamente para o repertório de vários grupos e artistas, mas a sua influência foi muito maior: o tipo de sonoridade, de energia, de ideia musical vai sendo repescado e sentindo-se em muitos artistas contemporâneos. José Mário Branco conta que sempre que se punha a ouvir os álbuns descobria coisas novas. Como acontece em verdadeiras obras de arte, o legado de Zeca é uma fonte inesgotável, sem barreiras históricas ou estilísticas: Zeca revive na memória coletiva de todos nós. Vive nas canções de hoje. Vive como um exemplo de lutador, de uma franca vontade de tornar o futuro um lugar melhor de se viver. Como tal, o documentário acaba com a mesma frase do início, que resume esplendidamente a postura que Zeca tinha para com a vida, e, consequentemente, para com o viver em comum. Após a visualização deste documentário, parece que o conhecemos um bocadinho melhor, que compreendemos mais a fundo a génese do seu processo criativo e o seu consequente envolvimento político. E por isso, agradeço. Agradeço a todos os que estiveram envolvidos na produção e realização deste documentário, permitindo que esta figura tão importante viva ainda mais dentro de nós. Porque sem memória, não há futuro.
Sara Maia
Palavras-chave: documentário; música de intervenção; 25 de abril; política.