Cymande: o cult classic que não vais querer perder
No passado dia 6 de outubro arrancou a 20ª edição do Doclisboa, o festival de cinema internacional que a capital tem recebido ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, arrancava também o meu gosto por Cymande, quando fui confrontada com esta banda no primeiro dia do evento. “Getting It Back: The Story of Cymande” é um filme que aborda os 50 anos de história da banda, oferecendo ao público não só uma janela para a realidade destes músicos, como também oferecendo um contexto sociopolítico indissociável à sua formação, tudo ao som do funk inconfundível destes músicos caribenhos radicados no Reino Unido.
Descrever o estilo de Cymande é uma tarefa que muitos músicos, críticos e jornalistas têm tentado fazer ao longo dos anos, no entanto revela-se algo impossível devido à sua grande mistura de sonoridades e géneros musicais. Não pretendo de todo adicionar mais adjetivos à causa, até porque considero que Cymande é uma banda que deve e merece falar (ou neste caso, soar) por si mesma e ser a sua sonoridade a cativar o público. No entanto, para aqueles que, tal como eu há duas semanas, estão a ouvir falar pela primeira vez de Cymande, a banda incorpora elementos do Funk com Fazz, R&B, Calypso Rock, tomando ainda influências da cultura Rastafari e sempre fazendo referência às suas origens caribenhas.
Cymande é uma companhia de todas as horas: tendo uma mensagem de “peace and love” no cerne da criação da banda, este conjunto de músicos não só toma a pomba enquanto o seu símbolo como também o seu nome significa pomba. Suave, doce, diferente, versátil: são todos descritores mais que apropriados para a sonoridade desta banda, que nos oferece no mesmo álbum uma mistura que vai desde canções populares rastafári até canções de 10 minutos com incríveis solos jazzísticos de flauta transversal: Cymande parece ter algo que agrada a cada gosto individual, juntando tudo num apetecível pacote de música inovadora e tranquila, perfeita para manter um bom humor.
Contudo, como podemos ter uma banda aparentemente perfeita para ser lançada para a estratosfera da fama, mas tanta gente desconhecer quem eles são até hoje? Como nos conta o filme através de montagens bastante vívidas, vemos a realidade do Reino Unido nos anos de 1970, nomeadamente as altas tensões raciais que se faziam sentir entre comunidades e que, no final de contas, martelaram o último prego no caixão de Cymande nesta década. O forte sentimento anti negro impedia que as editoras reconhecessem o talento do projeto, sendo-lhe afirmado que ninguém no Reino Unido iria querer ouvir aquele tipo de música, levando a que a banda se tentasse lançar nos EUA. Esta passagem para o outro lado do Atlântico revelou-se uma boa jogada, visto que os Estados Unidos possuíam uma maior comunidade negra face ao Reino Unido, permitindo um sucesso quase instantâneo da banda. Nos EUA, Cymande fizeram um sucesso estrondoso, fazendo a trifecta dos U.S. National Charts ao entrar nas listas de Jazz, R&B e Pop com os singles “The Message” e “Zion 1”. Ainda nos EUA, Cymande partem em tournée com inúmeros músicos de destaque da altura, como Al Green, Patti Labelle, Kool and the Gang, nomeando apenas alguns. O sucesso americano de Cymande continuou a verificar-se ao longo de 3 anos e 3 álbuns, sendo que havia chegado a altura de voltar a casa, ao Reino Unido, após este período de intenso trabalho. A banda retorna a Londres e em 1975 é dissolvida, motivada pelo desinteresse do público, não só devido à sua sonoridade caribenha como também pelo conteúdo político de muitas das suas canções, que não agradavam à maioria das pessoas fora da comunidade negra.
Ainda quando tudo parecia perdido, uma nova era de Cymande avizinha-se, desta vez não propriamente motivada pelos seus elementos, mas curiosamente pelas comunidades de Hip Hop, Rare Groove e Deep House dos anos ‘80 e ‘90. Cymande torna-se um sucesso tremendo nestes círculos, que redescobrem a banda e a tornam uma influência incontornável nestes géneros, através de sampling dos seus temas, fazendo Cymande uma das bandas britânicas negras mais sampladas até hoje. De la Soul, The Fugees, MC Solaar, são demasiados para conseguir contar os artistas que ouviram Cymande e se reviram naquela sonoridade tão característica e a reaproveitaram para as suas criações. Já em 2014, a banda volta-se a juntar oficialmente, lançando o seu primeiro disco em 40 anos, A Simple Act of Faith, com a maior parte dos membros originais, tendo estado em tournée este ano, motivada pela estreia do seu documentário. Contando com excelentes músicos como Steve Scipio (baixo elétrico e voz) e Patrick Patterson (guitarra elétrica e voz) como os membros centrais, a banda integra ainda um conjunto variado de percussão, vários saxofones e flauta transversal.
Cymande captura elementos incontornáveis e inesquecíveis da música negra acompanhados de mensagens de paz e de luta pela igualdade, numa mistura perfeita e equilibrada, que agradará a qualquer pessoa que aprecie uma boa linha melódica no baixo, com solos de instrumentos de sopro que deixam qualquer boca aberta e uma percussão marcada, embora ao mesmo tempo suave que faz os seus ouvintes abanar de prazer. Para aqueles que só agora se juntaram ao culto, a canção “Dove” é absolutamente indispensável e uma canção que considero encapsular perfeitamente o espírito de Cymande.
Patrícia Moreira