“The Beatles of Comedy II”: Entre o bruto e o caricato
O mês de agosto é conhecido pelas viagens, praia e, em muitos casos, pelo regresso a casa. Na terrinha acontecem as feiras e procissões que por sua vez, têm marchas cerimoniais. São compostas ou por filarmónicas, ou bombeiros voluntários, ou pela GNR - é como se fossem orquestras andantes, daí serem tocadas em pé e em movimento. No entanto, quando se pensa em marchas, frequentemente, são associadas às bandas militares e ao seu desfile à frente dos batalhões. Os géneros são hinos, odes heroicas, homenagens, marchas fúnebres e solenes que traduzem, de forma artística, o estilo de vida dos militares. Porém, há qualquer coisa de cómico nestes desfiles e paradas militares. Pode existir uma espécie de contraste entre o bruto e o caricato aos olhos dos humoristas, como é o caso do vídeo do Youtube do exército norte-coreano a marchar ao som dos Bee Gees. É épico! O excerto “Staying Alive” assenta perfeitamente no ritmo da marcha e pode verificar-se como o som é um meio de informação, seja de cariz militar, ou humorístico, e acontece em todo o lado. Somos rodeados por sinais sonoros que nos alertam e indicam sobre algo.
Vários são os instrumentos que fazem parte dos desfiles militares e populares, que nem sempre existiam para esse propósito, mas que ao longo do tempo foram adicionados, enriquecendo a marcha e desenvolvendo a sua conceção. Na cultura euro-americana os tambores, como a tarola e o bombo, ou os sopros, como o flautim e a corneta, faziam parte do cotidiano bélico. Os sinais e as cadências informavam quais os movimentos a serem seguidos e que tipo de ações seriam executadas. Um dos instrumentos mais associado às marchas militares é a tarola, conhecido também como tambor lateral (side drum) por estar suspenso por uma alça ao lado da perna do tocador. É um instrumento cilíndrico com duas peles e com uma ripa de ferro encostada à pele de cima que faz um zumbido quando se percute. O pífaro (fife) é, igualmente, um instrumento muito associado às marchas militares que, juntamente com a tarola, constituíram os primeiros grupos musicais neste contexto.
Todavia, a noção de banda militar surgiu no Império Otomano, chamada de mehterân, que foi influenciando a música na Europa, como a música clássica: por exemplo, a famosa Sonata para piano nº11 de Mozart, mais conhecida por Alla Turca, publicada em 1784. Esta influência contribuiu para a formação de bandas militares com a composição de metais, especialmente as secções de cavalaria, que se tornaram comuns no século XVIII. Contudo, este movimento só se consolidou no século seguinte em vários países, nomeadamente no Reino Unido e nos Estados Unidos da América; neste último, com o advento da Guerra Civil (1861-1865), os veteranos, de regresso a casa, começaram a formar grandes bandas a favor dos regimentos que representavam e, da mesma forma, foram surgindo várias bandas de cariz militar nas comunidades americanas do norte e do sul. Deste modo, a composição para as bandas militares foi gradualmente aumentando até ao século XX. As obras mais conhecidas, que tiveram várias adaptações, foram do compositor luso-descendente John Philip Sousa (1854-1932), conhecido como “Rei das Marchas” e por ter dado o nome ao instrumento de sopro Sousafone, que atualmente faz parte de várias bandas de cariz militar e académico no EUA.
Sem perder o fio à meada, voltemos ao cómico da coisa. Antes da existência do Youtube e uns anos antes do lançamento do hit dos Bee Gees, os Monty Python criaram a série Flying Circus (1969-1974) com um excerto do tema inicial da marcha “The Liberty Bell”, composta por Sousa, mas com uma adaptação dos Grenadier Guards. O tema da marcha é inspirado no State House Bell, símbolo da independência americana localizado em Filadélfia, no estado da Pensilvânia.
A série foi realizada em quatro temporadas e 45 episódios, em formato de sketches e segue uma espécie de comédia surreal, com situações absurdas e incongruentes, sem punchlines, com um humor cheio de insinuações e, sobretudo, físico. De forma geral, os sketches punham à experiência humorística temas da vida e cultura britânicas. O pograma foi produzido por John Howard Davies e as animações foram criadas por Terry Gilliam, o único americano Python, que escolheu a marcha de Sousa como introdução aos episódios, porque tornava claro a mensagem “pythoniana”: “straight down to business.". O nome Circus provém da reputação dos Pythons na BBC e Flying pela referência ao Red Baron, um aviador alemão da Primeira Guerra Mundial que comandava um esquadrão chamado “The Flying Circus”. Em relação ao conteúdo, os temas são variados e neles se representam alguns estereótipos da vida social inglesa, como por exemplo os Gumbys, um grupo de homens vestidos de forma idêntica, com galochas, calças com suspensórios, regatas, bigodes à Charlie Chaplin e um lenço na cabeça, que assumem uma postura bruta com os punhos fechados, mas num sentido desajeitado (retratam a classe operária britânica). Igualmente, os sketches fazem referência a figuras históricas, como o Cardinal Richelieu, e acontecimentos, como a Inquisição Espanhola, e ainda, mostram novas formas de caminhar pela vida, como é o caso do “Ministry of Silly Walks”, que originou, em 2011, o dia internacional do Silly Walk.
De facto, a mensagem de Flying Circus é clara e foi a partir desta base criativa que o grupo se lançou para outros projetos. O uso da linguagem, ou da sua desconstrução, sugerem outras formas de pensar sobre as convenções e a música é usada com este pretexto. A marcha de Sousa neste aspeto, soa em contradição com o seu propósito, porém entre os efeitos pitorescos, como o pé do cupido de Bronzino e o sino do State House de Filadélfia, faz todo o sentido.
Miguel Alves
Fontes:
Dobney, Jason Kerr (outubro, 2004). Military Music in American and Europoean Traditions. The Metropolitan Museum of Art
Disponível a partir de: https://www.metmuseum.org/toah/hd/ammu/hd_ammu.htm
TÜFEKÇİ, ALİ (19 de agosto de 2020). Mehter military band and Alla Turca style: Ottoman impact on European music. Daily Sabah.
Disponível a partir de: https://www.dailysabah.com/arts/music/mehter-military-band-and-alla-turca-style-ottoman-impact-on-european-music
http://www.montypython.com/tvshow_Monty%20Python's%20Flying%20Circus,%20Series%204/17
Para os curiosos:
Bee Gees e o Exército Norte-Coreano –
https://www.youtube.com/watch?v=QbC6dLG_dQY
O intro do Flying Circus –