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‘m’ de Música, ‘m’ de Medo: uma reflexão…

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O papel da música no cinema de terror parece tratar-se já de um tema amplamente estudado em pleno século XXI. Realizadores seminais do género como Hitchcock, Carpenter, Craven, Hooper, Spielberg e, mais recentemente, West, Roth, Zombie e Wan, entre muitos outros, perceberam a importância que o som – musical ou não – pode ter no sentido de salientar o significado ou o conteúdo emocional da imagem que estamos a ver e da situação em que, idealmente, enquanto espetadores, estaremos a ser imersos. Eli Roth, um dos mais aclamados realizadores de terror e grindhouse modernos, a mente por detrás de filmes como Hostel (2005), Green Inferno (2013), Cabin Fever (2002) e, mais recentemente, o gorefest que foi Thanksgiving (2023), diz, e cito: “If you don't want to be scared in a horror film, don't close your eyes. Close your ears.”


Lembro-me, em criança, de ter medo de certas canções ou peças de música erudita do mesmo modo de que tinha medo de filmes de terror, de um quarto escuro, ou de uma história assustadora. A dissonância, o exagero das dinâmicas, o recurso a elementos tonais ou modais menos comuns, as escalas menores, o aparente caos orquestral, a ambiência criada pela perturbação do ar quando produzimos música “triste” ou “zangada” (perguntem, respetivamente, a Remo Giazotto – criador do Adagio habitualmente atribuído a Albinoni – ou a Stravinsky [já ouviram A Sagração da Primavera?] se consideram a sua música qualquer uma dessas coisas…) sempre mexeu comigo. Lembro-me de ter medo do Pedro e o Lobo de Prokofiev, bem como da canção “El Cuarto de Tula”, dos Buena Vista Social Club (até a minha mãe me ter explicado que o quarto não estava de facto a arder…), medos esses que tinham em mim o mesmo efeito – medo do escuro, insónias, pesadelos – do que quando, demasiado novo, vi o Shining ou o anteriormente referido Hostel, filmes que me marcaram muito.


Há cerca de uma semana – no final de março – fui, ao cinema, ver o filme The Piper (ou, em tradução comercial livre, “A Melodia Maldita”), que conta a história de uma flautista profissional que tenta terminar um “Concerto para crianças” que a sua antiga mentora tinha deixado inacabado antes de morrer. Ora, tratando-se de um filme objetivamente fraco em termos técnicos (veja-se, nem que seja, pelo título português!) – quer isto dizer, com maus atores, pobre escrita, efeitos especiais decadentes e uma narrativa igualmente desinteressante e aborrecida que resulta num final risório –, penso que terá feito, apesar de tudo, algumas coisas bem feitas e que me deram espaço para a reflexão que vos trago hoje.


No segundo Ato desta obra-prima cinematográfica, descobrimos que o dito Concerto não terá sido escrito pela falecida mentora, mas sim por um demónio que, através dela, estava a tentar levar a sua avante através da música. Este demónio (ou melhor, esta entidade) é baseado no conto “O Flautista de Hamelin”: registado no século XIX pelos irmãos Grimm, trata-se de um conto retirado do folclore germânico em que a cidade de Hamelin, no século XIII, se encontra infestada por ratos. Nisto, os habitantes aceitam a ajuda de um “caçador”, prometendo-lhe uma moeda por cada rato que matasse, uma soma incrível para a altura. Assim, o “caçador”, tocando a sua flauta, conduz os ratos para fora da cidade, afogando-os no rio. Contudo, por não ter regressado com as provas do seu trabalho (as cabeças), os habitantes recusaram-se a pagar. Pouco tempo depois, numa tarde de domingo em que toda a cidade se encontrava na missa, o “caçador” regressou e tocou de novo a sua flauta, levando com ele, desta vez, todas as crianças da cidade, que nunca mais foram vistas.


Neste filme vemos, então, o efeito hipnótico que a melodia da flauta que abre o dito Concerto – melodia essa, diga-se de passagem, incrivelmente bem escrita e muito eficaz tendo em conta o que pretende simbolizar – parece ter em quem a ouve. Algumas crianças, como que hipnotizadas, começam a desaparecer, e os adultos não conseguem tirar a sinistra melodia da cabeça (eu inclusive, pois ainda hoje a ando a trautear sem conseguir parar). A orquestração desse leitmotiv também serve para exacerbar o caráter negro e assustador da melodia: há muitas dissonâncias entre os elementos da orquestra e poucos acordes “convencionais”, ouve-se um coro infantil (algo que, por si só, quando bem utilizado, já me deixa um pouco irrequieto) a acentuar certas partes, e a flauta transversal, com o seu vibrato muito único, parece tomar controlo de todo o momento.


Os gregos e, mais tarde, os renascentistas, teorizaram acerca do poder da música no ser humano inúmeras vezes. Se é certo que o próprio Platão se terá debruçado acerca da “música dos Astros”, as melodias e ritmos orgânicos do planeta Terra, bem como os inerentes ao movimento dos planetas e das estrelas no nosso sistema solar, é também verdade que Santo Agostinho e a própria Inquisição terão inclusive legislado acerca do poder negativo da música na sociedade: se, por um lado, esta forma de Arte pode ser catártica, promotora da ordem social e muito positiva para o indivíduo, há que não esquecer o motivo pelo qual um certo intervalo (a “4ª Aumentada” – um dó e fá sustenido, por exemplo, para referência, as primeiras duas notas do tema dos Simpsons) foi proibido durante tantos séculos (chamado “diabolus in musica”), precisamente por, teoricamente, perturbar a ordem natural e orgânica das coisas. Se a música é ar em movimento organizado (o não-organizado seria, por exemplo, ruído branco, ou o som produzido pelos instrumentos de percussão que não emitem notas propriamente ditas), é de supor que esse movimento seja levado a cabo segundo todas as leis da Física e, consequentemente, da Acústica. Se tal não acontecer, suponhamos, então estamos a lidar com vibrações negativas, perturbações sobrenaturais do ar, movimentações Terrestres e celestes que vão contra a ordem natural das coisas no Universo conhecido. Mas será isso sequer possível, ou apenas uma teorização da Quântica sem resultado prático senão o plot de inúmeros filmes de ficção científica?


O filme termina com uma épica batalha de flautistas (o imaginário ocidental é uma coisa fantástica!), em que o demónio de Hamelin, agora forte por ter conseguido completar o seu Concerto, toca repetidamente a sua negra e perturbadora melodia, atraindo as crianças e ganhando ainda mais força. A vigorosa e destemida protagonista, por outro lado, parece compreender o “poder da música”, e faz pequenas alterações na melodia, passando-a de um modo menor para um modo maior. A orquestração muda também de modo a adaptar-se à nova melodia, passando de um acompanhamento dissonante, negro, e muito ritmado, para uma progressão suave e harmoniosa. Nisto, o demónio vê-se derrotado e o Bem, através do “poder da música”, triunfa mais uma vez.


Mas será possível – mitos, lendas e inevitáveis sarcasmos à parte – que a música tenha este efeito no processo de regulação das coisas boas e más da Terra? Será possível que certas peças musicais que utilizem determinados elementos tenham não só em nós (pois isso está já mais do que estudado), mas também no planeta ou mesmo no Universo, um efeito, seja positivo ou negativo, tão poderoso assim? Até que ponto é razoável teorizar e especular acerca do poder da música e, já agora, da Arte? Este filme parece propor a não-existência de limites para tal exercício filosófico, mas eu permaneço inesperadamente cético. Poderá a Arte ter um efeito subliminar físico, invisível aos nossos olhos, mas tão ou mais importante que o impacto emocional direto que tem na nossa vida?




Guilherme Santos



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