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"Goodbye": catarse de um ano Inside

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Robert Pickerting Burnham (mais conhecido por Bo Burnham) é um nome irreverente no cenário atual da comédia musical e algo que o destaca é a sua habilidade de deixar sempre o público nas suas mãos. No trabalho de Bo, a audiência encontra-se numa posição vulnerável face ao conteúdo a que é exposta, ficando sempre na dúvida se aquilo que está a ver é uma descrição real do estado do performer ou se é uma charada elaborada para criar a personagem de palco que Bo Burnham nos apresenta. No final de Make Happy (2016), após o público testemunhar um longo episódio de declínio mental no palco por via da canção, somos levados para uma divisão da casa de Bo, onde ele nos canta uma canção de despedida, deslocando-se alegremente para o exterior junto da sua parceira e do seu cão. Mas afinal o que acabamos de ver? Um momento de felicidade no meio de muitos de ansiedade ou o momento de dissociação entre Bo Burnham o comediante e Robert Burnham a pessoa? O comediante confessa anos antes ao seu público que planeia detalhadamente as suas performances no seu primeiro especial de comédia da Netflix, what (2013), em que deixa cair uma garrafa de água “acidentalmente”, só para a seguir se ouvir uma canção pré-gravada que diz “He meant to knock the water over, but you all thought it was an accident. Art is a lie. Nothing is real.” Como pode o espectador continuar a encarar a performance da mesma maneira depois deste momento, que aparenta ser uma pequena piada acerca de uma garrafa, mas que abre uma porta tão clara para as intenções da comédia de Bo Burnham?

No seu mais recente projeto, Inside (2021), Bo apresenta-nos o expoente máximo da sua criatividade e testemunhamos um projeto em partes iguais glorioso e depressivo, constituído por um meta-comentário social que aborda a influência tóxica da internet na nossa cultura e como a comédia se encaixa no meio de tudo. A audiência é mais uma vez confrontada com o genial esbatimento das linhas entre aquilo que é considerado um ato calculado e coincidências felizes: ângulos de câmara, letras de música cuidadosamente escritas e imagética variada, são tudo dispositivos utilizados para manipular a nossa perceção. Mesmo os corajosos que se sujeitam a diversas visualizações veem o seu cérebro ficar confuso sobre o verdadeiro significado desta ou daquela piada. Bo Burnham aguça-nos assim a curiosidade numa hora e meia de altos e baixos emocionais.

Inside foi um projeto que me comoveu bastante por diversas razões: desde o cuidado de Bo com os mais ínfimos pormenores até à permissão que nos estende para sentirmos com ele todas as emoções, estados de depressão e desespero face ao mundo. Ao tentar escrever este artigo, comecei a indagar-me sobre o que poderia acrescentar à discussão que não acabasse por ser redundante ou que eliminasse a vontade das pessoas de irem explorar por si o projeto, pelo que decidi ficar-me pela canção de despedida. “Goodbye” é uma canção de despojamento, com uma linha vocal bastante bela e simples e acompanhamento básico ao piano, e Bo opta por uma despedida verdadeiramente chorosa: com o final de Inside fecha-se um capítulo na sua carreira. Inside apresenta-se como uma carta aberta sobre os seus problemas e de onde tudo provém e a canção de despedida vai seguir o tom do resto do especial; esta música é não só a despedida, mas o culminar (e, de uma certa maneira, uma versão condensada) do seu trabalho e revivemos tudo o que sentimos ao longo do especial no decorrer de apenas 4 minutos. Bo aparece num dos seus estados mais vulneráveis nesta canção e acho que é apropriado pegar na música que mais encapsula o sentimento deste projeto.

A 9 minutos do final, Bo declara que finalmente acabou o seu especial e ele aparece diante de nós como um homem renovado, mais arranjado e de cabelo cortado e barba feita. Esta canção vai criar uma cisão na performance: em Make Happy, Bo despe-se metaforicamente dos seus robes de artista e parte para a sua família, enquanto que, em Inside, Bo se despede da pessoa que foi durante a criação deste projeto. Ele senta-se ao piano, começando a cantar “So long / Goodbye” e, assim que ouvimos estas palavras, a imagem de Bo sofre alterações e vemos cada vez mais uma imagem da sua personalidade desmazelada a dominar o ecrã até “Bo arranjado” desaparecer por completo na segunda vez em que diz “goodbye.” Esta transição entre as duas personalidades está brilhantemente pensada: temos a personalidade de Inside a despedir-se de si mesma, como se fosse uma balada do passado que desemboca diretamente no futuro. Esta ideia de transição e mudança é acompanhada pela letra, quando Bo canta “You can pick the street / I’ll meet you on the other side”, um eufemismo sobre reencontrar alguém na morte e que Bo aplica a si mesmo, dizendo que depois de Inside ele estará num “outro lado”, implicando existe uma nova fase, algo que não sabemos se irá incluir a sua continuação na comédia ou não.

Seguidamente somos atingidos com o verso “Do I really have to finish?”, em referência a terminar Inside. O que torna este verso tão devastador no contexto da canção é que Bo não sabe o que acabar Inside significa para si: desde o início do especial que ele nos diz que esta é uma maneira terapêutica de lidar com os seus sentimentos e dificuldades ao longo do confinamento (“to distract me from wanting to put a bullet into my head with a gun”). O final implica o último passo da génese do seu trabalho e isso irá obrigar Bo a enfrentar verdadeiramente aquilo que sente em vez de continuar a transformar em comédia a sua situação. O acompanhamento simples em acordes, pelo piano, deixa transparecer a voz de uma forma singular e podemos testemunhar a evolução de Bo Burnham como compositor e cantor. Acima das suas qualidades de comediante, Bo revela uma faceta de cantor melhorada, com uma voz muito mais aprimorada e um maior controlo sobre o seu timbre e sobre a emoção que sente, já para não mencionar o grande salto de complexidade nas suas composições, que se elevam a um patamar superior às anteriormente cantadas em especiais de comédia ao vivo. A sua voz rapidamente nos embala e não conseguimos ficar imunes aos sentimentos de melancolia e nostalgia que Bo impregna na canção através do seu tom emotivo.

Ainda antes do refrão, Bo pergunta “Does anyone want to joke / When no one’s laughing in the background?”, oferecendo novamente uma luz autocrítica acerca do seu trabalho: se comédia é algo que existe para entreter as massas, continuará a sê-lo quando não está lá ninguém para rir? Inside foi um passo corajoso para Bo depois de tantos anos a fazer stand-up, mas acaba por representar uma regressão do artista ao seu estado original, criando conteúdo para uma audiência que ele não consegue ver/ouvir e que não é capaz de lhe dar feedback que lhe garanta que aquilo que ele apresenta tem valor cómico.

O refrão introduz-nos uma nova imagética, uma vez que nos apercebemos que o “Bo desmazelado” esteve sempre a cantar com uma projeção da Lua como pano de fundo. Aqui, Bo está a hiperbolizar os seus sentimentos de solidão, pondo-se literalmente a cantar para a Lua, a companheira noturna de todos aqueles que na escuridão se sentem sós. Só conseguimos ver a Lua durante o refrão, como se estivesse a sinalizar que aqueles são os versos mais sós de toda a canção, onde Bo se permite ser honesto por se encontrar verdadeiramente sozinho: o verso “So this is how it ends” é entregue com amargura e descontentamento, mostrando a dessatisfação que Bo sente em acabar um projeto que teve, desde o início, uma natureza de aperfeiçoamento perpétuo, e “I promise to never go outside again” chama a atenção para a sua incapacidade de voltar a enfrentar o mundo na circunstância em que se encontra. Temos também a introdução de um novo instrumento, o violoncelo, que faz notas longas em legato, dando especial relevo ao começo do refrão, oferecendo uma nova complexidade ao instrumental. Para Bo, as horas misturam-se com os dias e os dias com as semanas e meses de trabalho infindável acabam por se transformar em apenas 97 minutos de conteúdo (“I’m slowly losing power / Has it only been na hour? No that can’t be right”). O descontentamento de Bo só vai crescendo mais ao longo da canção, com versos como “How about I sit on the couch / And I watch you next time”, e depois em “I wanna hear you tell a joke / When no one’s laughing in the background”, um trocadilho com o pré-refrão anterior, onde ordena o público a ponderar acerca da tarefa impossível de atuar para uma audiência que não existe fisicamente.

A secção final da canção é invulgarmente longa, tomando quase metade da duração da música. O tempo acelera abruptamente e o acompanhamento do piano torna-se mais energético. Avançamos em direção ao derradeiro final, mas também à deterioração de Bo. Vemos novamente uma referência à sua carreira no Youtube (“Am I right back where I started fourteen years ago?”), que alude também ao seu estado mental de adolescente, que vemos agora repetido na idade adulta. Rapidamente somos devolvidos a um sentimento de familiaridade com o retorno das notas longas do violoncelo e 3 referências seguidas a canções anteriores: “Welcome To the Internet”, “Comedy” e “Look Who’s Inside Again”.

“I swear to God that all I’ve ever wanted was / A little bit of everything all of the time” são os versos que iniciam a evocação de “Welcome To the Internet” e é mais um dos momentos em que Bo se encontra a refletir sobre o passado, sobre como a sua necessidade de abafar a sua solidão em adolescente o levou ao estrelato na idade adulta e o facto de ele não saber lidar com toda a atenção que trouxe para si mesmo. Bo termina esta estrofe com o verso “I’m finished playin’ and I’m staying inside”, onde poderá estar a indicar que, apesar de Inside ter a função de catarse, isso não quer dizer que este projeto será a cura dos seus males, mas será mais como um bode expiatório em que pode despejar os seus sentimentos indesejados; no final do projeto (e da “brincadeira”), Bo não está realmente diferente ou melhorado, está só dentro da mesma sala de sempre, de onde não tem intenções de sair. Esta estrofe faz um ótimo trabalho a retomar motivos melódicos anteriores, algo que é sobretudo conseguido pela preocupação de Bo em utilizar uma certa malvadez no seu tom, tal como aplica na primeira vez que ouvimos “Welcome To the Internet”.

Logo a seguir, a câmara muda de ângulo e vemos a cara completa de Bo pela primeira vez desde que a canção começou. O enquadramento da câmara é muito semelhante ao que vemos durante secções de “Comedy”: um close-up com Bo quase de frente para a câmara, de olhos cerrados, apenas voltando-se na nossa direção quando ouve “Oh shit.” O acompanhamento do piano é mais suave e num registo mais agudo e sentimo-nos num ambiente mais intimista. Como se pode notar, a letra desta secção e a letra de “Comedy” não são bem iguais, sendo que nesta canção são invertidos os papéis, no sentido em que ele não nos vem salvar com a sua comédia, mas é, sim, ele que precisa de salvamento desta vez; em “Comedy”, Bo fala de como os comediantes aceitam este papel de “salvadores da pátria capazes de resolver qualquer problema com piadas” quando são apenas meras pessoas que exploram os problemas do dia-a-dia para o seu próprio lucro, mas, em “Goodbye”, o comediante é agora o oposto e Bo sente que a comédia o desgastou e que “não há piada que o salve.” Quando ele finalmente encara a câmara e profere “Oh shit / You’re really joking at a time like this?”, esta pergunta é nos dirigida: depois de ser pedido ao público que o salve com comédia, Bo repreende-nos por fazermos uma piada; isto serve para mostrar ao público que não nos podemos rir de uma situação e, ao mesmo tempo, condenar o aspeto cómico desta.

A última referência é, talvez, a mais importante de todas e o prego final no caixão: “Look Who’s Inside Again”. Ouvimos não é só Bo como performer, mas também uma versão digitalmente modificada da sua voz que serve como uma ferramenta de gozo da situação de Bo ao professar opiniões ridículas ou maldosas (e que neste caso personifica a sua audiência). Esta secção passa então do prisma de Bo para o prisma da audiência: Bo explica-nos como a sua retração do mundo é um mecanismo de proteção e seguidamente o público exige que ele se renda e forneça o conteúdo tão esperado, quer seja à custa da sanidade de Bo ou não. A nudez e o holofote focado na sua figura têm também aqui um significado importante, já que Bo expôs todas as suas inseguranças e medos em Inside e agora não sabe como há de voltar a reentrar num mundo que viu todas as facetas que ele se recusava a mostrar. Ao expor este seu lado menos usual à sua audiência, Bo não consegue retornar para o conforto da sua privacidade depois de convidar o público a entrar e rir da sua miséria: está agora “nu” (metafórica e literalmente) e não consegue achar uma forma de regressar à comédia sem que tenha de coexistir novamente com a sua ansiedade.

Já depois da música acabar, Bo sai de casa e é aplaudido por um público invisível. Quando deseja regressar para o interior, fica imediatamente trancado fora da casa e o público ri-se das suas tentativas desesperadas de abrir a porta, ilustrando perfeitamente a última estrofe da canção “Goodbye”. De repente, estamos a ver a cena por uma gravação de vídeo e reparamos que é Bo quem está a assistir: ele nunca chegou a sair do quarto e, por isso, a libertar-se da sua debilitante situação mental. Ficamos na dúvida do que isto significa para Bo e para nós: em que estado se encontra mentalmente? Vai voltar aos palcos? Ele deixa-nos com as incógnitas tanto acerca do seu verdadeiro estado, como qual o próximo passo na sua carreira. Se, por um lado, passamos uma hora e meia a ver o declínio de Bo, observamo-lo no final a rir-se tenuemente da cena em que ele próprio se encontra em dificuldades. Será Bo capaz de rir sobre a sua situação ou será que este é mais um dos casos em que Bo esculpe cuidadosamente um persona para poder servir de expiação? Não podemos ter a certeza porque Bo não quer que a tenhamos, mas uma coisa ficou esclarecida: esta é a sua obra mais ambiciosa e genial publicada até agora.


Patrícia Moreira

Título do projeto: Inside Diretor: Bo Burnham Ano: 2021 Duração: 97 minutos

Palavras-chave: "Comédia musical", “Bo Burnham”, “Inside”.


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