We Shall Overcome
Hoje, o Ruído-Mudo apresenta, pela primeira vez, um artigo como seguimento do anterior, pela sua ordem temática: o feminismo. Como tal, como uma continuidade de Nina Simone e da sua importância para o feminismo, relembramos hoje Joan Baez. Joan, a nível de timbre, acaba por ser quase o oposto de Nina Simone: o seu timbre agudo e, digamos, quase celestial, cativa-nos desde os primeiros segundos que a ouvimos. Somos assolados por uma certa pureza inerente à voz de Baez. No entanto, algo muito próprio une as duas artistas: tal como Nina, Joan sentia que a sua arte tinha de ter um forte envolvimento com os acontecimentos. Neste sentido, sendo cantoras praticamente da mesma geração, Joan esteve igualmente ligada ao movimento dos direitos civis.
Os momentos conturbados que se viviam propiciavam este forte envolvimento político. Associado ao auge dos movimentos antirracistas, cresce a contestação contra a guerra do Vietnam. Num movimento que se começava a denominar “contracultura”, em que se contestava, genericamente, o modo organizacional da sociedade dita ocidental, lutava-se contra a pobreza generalizada, bem como pela liberdade de expressão e liberdade sexual, com a crescente liberalização dos métodos contraceptivos. Os movimentos feministas cresciam também, lutando pela igualdade de género. Lutava-se por direitos que, nos dias de hoje, em parte, já foram conquistados e que consideramos vitais. Por outro lado, sabemos que outros direitos estão ainda longe de serem atingidos na sua plenitude. Nesta onda de conflitos em constante crescimento, as pessoas sentiam que a sua voz faria a diferença. Não esqueçamos que 1963 é o ano do discurso “I have a dream ”, impulsionando, sem dúvida, a possibilidade do ser humano sentir que é possível viver numa sociedade mais justa, igualitária e antirracista, sem recorrer à violência para a alcançar. Num contexto em que todas as questões eram muitíssimo politizadas, a canção de intervenção tinha um enorme papel de propagação de ideais, de consciencialização política e de denúncia das injustiças. Se pensarmos um pouco, é-nos evidente a poderosa força mobilizadora da música. Todos sabemos cantar - melhor ou pior - todos temos essa capacidade, digamos, quase inata: os primeiros gritos e choro do nascimento são já um primeiro cantar. À medida que vamos crescendo, somos imbuídos num cada vez maior banho musical, independentemente da cultura em que estejamos inseridos. A música parece então ser uma força cultural universal da Humanidade. Seguindo esta linha de pensamento, todos temos capacidade de aprender melodias. Melhor ou pior, todos nós as retemos, as cantamos, seja sozinhos, com outros, ou para outros.
A canção que hoje vos trago é, talvez, das melodias mais cativantes, mais belas e, em simultâneo, mais simples que já ouvi. É precisamente pela sua simplicidade que tantas vozes se juntam à de Baez. Quando esta a apresentava, todos a cantavam – qualquer versão ao vivo que encontrem desta música é seguida por uma enorme multidão que acompanha a voz de Baez, pois é uma melodia que vive do cantar em conjunto. “We shall overcome” – música que, inclusivamente, deriva de um gospel (“I’ll overcome someday”), e que apela, à primeira vista, a uma libertação divina, mas sendo cantada pela comunidade negra, apela também a uma libertação terrena – a do povo negro. Mais tarde, foi retomada por Pete Seeger e tantos outros cantores de intervenção, tornou-se rapidamente um hino dos movimentos dos direitos civis. A melodia é composta por seis frases, agrupadas três a três. A letra, é, por si só, simples, para poder acompanhar a facilidade da melodia: as estrofes seguem-se, mantendo o mote “we”, essa palavra intensa que apela ao coletivo, mudando apenas a sua continuação. No entanto, não nos enganemos: a aparente simplicidade da música acaba por se revelar numa mensagem poderosíssima, e é precisamente a sua clareza melódica e poética que a torna tão poderosa. É um apelo à vida em comunidade, à vida sem discriminação racial (“We’ll walk hand in hand”), à paz (“We shalll live in peace”), à liberdade (“The truth shall make us free”), mas não é um apelo vazio, pois cada estrofe, nos últimos versos, ganha um carácter emotivo, quase visceral, marcado pela sensação de esperança (“Oh deep in my heart I do believe”), tão específica do ser humano.
“We are not afraid today”, das últimas estrofes comumente escolhidas para cantar (pois cada cantautor ordenava as estrofes como lhe parecesse melhor), conclui uma das ideias mais essenciais para este período: a necessidade de não ter medo enquanto se luta, e por se saber que o objetivo é chegar a uma sociedade mais justa. Neste sentido, poderemos fazer uma última ponte com Nina Simone sobre a sua definição de liberdade, que, para a artista, é, acima de tudo, um sentimento, uma forma de estar: segundo a artista, como referi no artigo anterior, quando deixarmos de sentir medo, é porque viveremos em liberdade. E digamos que Joan, ao cantar este mote, acrescenta: o deixar de sentir esse medo terá de vir primeiro, pois para lutarmos pela liberdade, a barreira do medo terá de cair primeiro, por se ter a certeza de que estaremos a construir um caminho mais justo e mais livre para a Humanidade.
Hoje, perante a Guerra que a Ucrânia trava com Putin, parece mais pertinente que nunca relembrar esta canção. Relembrar que a História se repete, e observar a sua repetição, mas não de forma passiva. Torná-la ativa através do que Joan canta, perpetuando os nossos sentimentos, a nossa esperança e as nossas inquietações: relembrar que a todos esta guerra nos diz respeito, que não teremos medo de lutar pela liberdade do povo ucraniano. Relembrar que, acima de tudo, temos esperança na Humanidade e lutaremos por ela.
Sara Maia