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Do quarto ao hotel e do hotel para o quarto – Leonard Cohen em Death of a Ladies’ Man

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Estou sempre atrasada. Não aprendi a andar de bicicleta nem a nadar na minha infância (deixei-o para a adolescência), demorei tempo indeterminado a aprender a dar o nó do sapato quando era garota e ainda sou a pessoa que ri prazerosamente quando todos na sala já pararam de o fazer. Não admira que aconteça o mesmo com a música: mesmo conhecida e reconhecida de forma consensual, e consciente de que apreciá-la seria tão expectável como o sol nascer pela manhã, demorei-me, despreocupada, a ver a magia na música de Leonard Cohen. O português consola-se a si mesmo e exclama mais-vale-tarde-do-que-nunca! Foi no verão mais quente da história – o mesmo verão em que Pavement tocou pela primeira vez em Portugal – que me apaixonei pelo Death of a Ladies’ Man.


Gravado no verão de 1977 – ano recheado de uma quantidade absurda de música excecional (pensemos no álbum de estreia de Talking Heads e de Suicide, Heroes de David Bowie, Marque Moon dos Television ou Amoroso de João Gilberto) –, o quinto álbum de Leonard Cohen foi produzido pelo americano Phil Spector, que lhe garantiu a essência rara da sua sonoridade e que também colaborou na composição. Spector produziu o single “Be My Baby” (1963) do grupo feminino The Ronnettes, colaborou com a Cher, produziu o último álbum dos Beatles e co-produziu a discografia a solo de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison (e mais tarde Yoko Ono) e produziu o End of the Century (1979) dos Ramones, o que o tornou reconhecido como uma figura notável para a música pop na década de 60. Embora considerado o seu álbum mais completo (envolveu muita gente e ouve-se uma orquestração harmoniosa de uma grande variedade de instrumentos, entre eles, a trompete, o trombone, a flauta, o órgão e o piano – o mesmo não se pode dizer do resto da sua discografia, onde se aposta quer na simplicidade da sua voz quer na poesia), Death of a Ladies’ Man não foi bem recebido pela crítica em geral. Numa época em que a música se virava cada vez mais para o punk e para a filosofia antissistema, o disco tornou-se o underdog da sua discografia, legitimando-se na justificação de não se coadunar com a precedente crueza e organicidade da sua música até então. Limpado o pó da estante, encontremos o pote de ouro no fim do arco-íris: a primeira música, “True Love Leaves No Traces”, esse slow acidental com traços de bossa-nova, parece saída de A Hard Day’s Night (1964) de tão romântica que é. A participação de Ronee Blakley (também canta em “Iodine” e “Memories”) torna a faixa sublime (é mais um caso Frank/Nancy Sinatra ou, mais tarde, Suzi Quatro e Chris Norman, onde o contraste entre a voz feminina e a voz masculina funciona de forma tão natural e bela) e o instrumental parece desenhar o cenário mágico e onírico que o refrão espelha, quando em uníssono se ouve: “True love leaves no traces / If you and I are one / It's lost in our embraces / Like stars against the sun”. A música “Fingerprints” é mais mexida, folclórica e o seu registo é humorístico: Cohen chama e procura pelas suas impressões digitais, mas não as encontra porque as deixou no corpo de uma mulher, de tanto lhe tocar. Cheia de energia folk e country, a voz de Venetta Fields – música americana que também foi membro do coro de Tina Turner, Pink Floyd, Neil Diamond e nos Rolling Stones – faz-se ouvir no coro, no meio da zaragata cartoon-ish que Cohen foi capaz de criar de forma tão criativa, tal é a sua qualidade no ofício de poeta.


No tema “Iodine”, a trompete e o iodo têm um papel central. A canção parece teletransportar-nos para uma espécie de pequeno bailarico numa sala ampla, a tresandar a álcool e a tabaco, embrenhada na sensualidade e beleza da mulher (vocativo de Cohen) cuja bondade/beleza parece ser maternal sobre o poeta magoado quando se ouve: “You let me love you ‘til I was a failure / Your beauty on my bruise like iodine”. O conjunto de versos intriga-me: se por um lado reconheço a sua beleza por outro não consigo ignorar a sua perspetiva misógina presente ao longo da sua discografia. Em canções como “Don’t Go Home With Your Hard-On” (onde o coro é composto pelo Bob Dylan e pelo poeta Allen Ginsberg), Cohen assume-se como galã, frio e estúpido, procurando conforto entre as pernas de uma mulher, justificando o seu comportamento no passado do seu pai, “I follow my father’s trade”. Na canção “Memories”, Cohen relembra a sua interação com a tallest and the blondest girl da festa – Eyes Wide Shut? – e regressa, mais uma vez, à sua carnalidade costumeira, cantando sobre o seu desespero pelo toque. A história é acompanhada pela trompete, cheia de altivez, e pelo coro que providencia a magnitude e ribalta que apenas uma grande festa consegue emanar. Em “Paper Thin Hotel” – eleita a minha faixa preferida –, o feitiço vira-se contra o feiticeiro: Cohen é apanhado pela sua própria manha, numa situação que pode parecer ridícula mas cedo damos conta da sua banalidade, quando é surpreendido pela mulher que o trai no quarto de hotel. O piano e a voz de Cohen são centrais na balada, crua e honesta. A maravilha acontece logo quando se perde a esperança e de coração despedaçado canta, “I was not seized by jealousy at all / In fact a burden lifted from my soul / I heard that love was out of my control”. Chegado o momento-chave de Death of a Ladies’ Man, o coro surge no fim da música, conferindo a aura celestial da redenção de Cohen, personificada no último tema do álbum, intitulado “Death of a Ladies’ Man” onde sentimos outra faceta do artista, humilde e honesta, deixando para trás e enterrando o mulherengo que outrora foi (o luto é confirmado na discografia que se segue depois de 1977). Lembra o ex-Beatle George Harrison em All Things Must Pass (1970) e encerra-se a odisseia solitária do canadiano numa canção de dez minutos. Cai o pano e desvenda a economia da expetativa no que toca ao amor quando canta: “It’s like our visit to the moon or to that other star / I guess you go for nothing if you really want to go that far”.

O conjunto de poemas em Death of a Ladies’ Man mostra a dupla faceta de Cohen: varia entre o romântico e o carnal, onde o amor é ora ferida aberta ora penso rápido; em todos os casos, livre e incontrolável. Na passada quarta-feira, dia 21 de setembro, celebrar-se-ia o seu aniversário. Embora já não esteja vivo, a sua influência na música e na literatura foi e continua notória. Lembro o renegado Death of a Ladies’ Man e a sua magia, companheiro do meu verão, e agradeço a dança.




Catarina Fernandes

30 de setembro de 2022





Título do álbum: Death of a Ladies' Man

Ano de edição: 1977

Editora: Warner Bros

Duração: 42:34 minutos

Produção: Phil Spector



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