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Amor que Cura e Amor que Destrói: uma breve comparação temática entre “My Love Mine All Mine” e “I’m Your Man”

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O mais recente álbum de Mitski, The Land is Inhospitable and So Are We, foi lançado há pouco mais de um mês, mas é já um daqueles álbuns que se afirmou fortemente na minha rotação musical dos últimos tempos.


Esta aventura musical de Mitski mostra uma ligação muito forte à cultura folk e sonoridades americana e country que, acoplada ao lirismo da cantora, oferece-nos um produto que nos põe em confronto com sentimentos de mágoa, melancolia e amor e convida-nos a senti-los junto do calor da fogueira numa noite escura iluminada por estrelas. Ao ouvir este álbum pela primeira vez, duas canções destacaram-se imediatamente: “My Love Mine All Mine” e “I’m Your Man”. À primeira vista parecem bastante distintas, sendo a primeira claramente uma canção mais acolhedora e, de um modo geral, mais positiva, e a segunda, ainda que calma, revela-se bastante pungente pelo contraponto entre a letra genial e crua e um instrumental discreto, mas sombrio. Contudo, as visões aparentemente antagónicas do amor, contidas nestas duas canções, são aquilo que torna tão interessante trazer as duas para o mesmo patamar e perceber como a visão de uma influi na outra.


A canção “My Love Mine All Mine” traz-nos uma sonoridade bastante suave e assumidamente country, com instrumentação predominante de guitarra acústica, percussão suave e pedal steel guitar. Esta canção fala-nos de temas de amor, morte e aceitação, onde Mitski faz um pedido à lua para guardar o seu amor para que este possa brilhar eternamente de lá, numa tentativa de eternizar em algo duradouro, como a lua, o amor que a cantora, uma entidade efémera, nutre por si e pelos outros. Num mundo em que há tanta ênfase em posses materiais e na importância do legado que deixamos após a morte, a cantora oferece-nos uma canção em direta oposição a esses valores, mostrando ao ouvinte que o legado que ela pretende deixar é um de amor e não necessariamente uma lista de conquistas.


“My Love Mine All Mine” é a manifestação de uma carta de amor que se revela simultaneamente como uma despedida, onde o amor é aquilo que resta depois de tudo o que se viveu. Esta canção chega até nós como um abraço doloroso, mas reconfortante – somos confrontados com a ideia da morte e a sua finalidade, mas, por outro lado, reconfortados pelas melodias suaves e graves de Mitski que nos dizem que a vida, apesar de passageira, pode ser recheada de coisas duradouras muito além do tempo que passamos na Terra.


Esta canção é também uma reivindicação que Mitski faz do seu amor-próprio e dos seus atos de serviço para os outros, afirmando que ela amou, e que isso diz mais acerca dela mesma do que necessariamente do objeto do seu afeto, colocando a cantora no centro do ato de amar, como uma força ativa, e não meramente um veículo corpóreo por onde a bondade flui. Em entrevista, a cantora disse que a sua infância foi pautada por mudanças constantes de casa, pelo que ela sempre sentiu que tudo à sua volta era temporário. Assim sendo, o amor que ela tem pelos outros revela-se como a única coisa permanente e que verdadeiramente lhe pertence. No final da canção, a cantora profere as palavras: “Nothing in the world belongs to me / But my love, mine, all mine / Nothing in the world is mine for free / But my love, mine, all mine, all mine”, trazendo até nós a mensagem de que o estado transitório das nossas possessões e até da nossa vida é algo inevitável, mas através dos nossos atos é possível deixar um legado de afeto.


Passando agora para “I’m Your Man”, esta revela-se como um dos exemplos da discografia de Mitski em que não se denota grande preocupação com a estrutura, sendo a sua organização em duas estrofes utilizada meramente para servir um propósito narrativo. Esta canção emana imagética celestial e religiosa, que é usada para ilustrar a metáfora de colocar alguém que amamos num pedestal inalcançável.


“You’re an angel, I’m a dog / Or you’re a dog and I’m your man / You believe me like a god / I destroy you as I am” são os quatro versos iniciais e somos imediatamente atraídos para a canção pela sua letra aparentemente contraditória. Em “I’m Your Man”, Mitski explora um relacionamento que ela sente que se encontra condenado a falhar, por não conseguir alcançar a alta expectativa que têm dela numa relação, ponderando a morte após o inevitável abandono. As referências ao amor e morte nesta canção apresentam conotações bastante diferentes às observadas na canção anterior: enquanto ambas as canções apresentam a morte como inescapável, em “My Love Mine All Mine” a cantora fala desta como algo pela qual não se sente incomodada devido ao amor que deixa para trás. Já em “I’m Your Man”, Mitski canta: “No one will ever love me like you again / So, when you leave me, I should die / I deserve it, don’t I?” e mais à frente: “I can feel it getting’ near (…) I’ll meet judgement by the hounds”, equiparando a ideia da morte como um castigo: se ela não consegue aceitar o amor de alguém que a vê como um deus e que “nunca ninguém a vai amar como aquela pessoa outra vez”, a vida para além do relacionamento perde o sentido e a morte chega como a sentença pelo crime de não conseguir amar à luz do pedestal onde foi colocada. Nesta segunda canção, reparamos numa certa passividade em relação à temática do amor: é algo a que ela está sujeita e não algo que vê como criadora; a cantora sente que o parceiro a ama tanto que ela o vai acabar por dececionar eventualmente, sendo a relação demasiado boa para ser verdade. “You believe me like a god / I betray you like I am” aparece como uma transformação dos versos da primeira estrofe: “You believe me like a god, I destroy you like I am”, onde vemos Mitski falar de como a devoção do seu parceiro e a sua visão dela como uma “deusa” faz com que a possibilidade de ela cometer um erro seja tão mais devastadora para o seu parceiro, que lhe faz reverência.


Esta canção é dotada de um grande poder imersivo pela sua secção final, que contém um arranjo coral e sons de insetos e cães a ladrar. Esta inclusão de elementos extramusicais adiciona bastante à canção, providenciando ao ouvinte uma secção de reflexão repleta de significados a ser descodificados. Ainda que a cantora já tenha dito em entrevista que a inclusão destes elementos da realidade na canção não tenha nenhum propósito narrativo específico, podemos ver como estes podem ser interpretados como possuindo um significado diretamente referente aos temas da canção. Esta secção final contrapõe sons de um coro a quatro vozes com sons de cães a ladrar, que evocam a imagética celestial e religiosa através do coro e os sons dos cães, que nesta canção são não só associados à devoção, como também ao inferno (cães do inferno=hounds of hell). Tal como a reverência de alguém a deus, Mitski equipara esta devoção àquela que sente por parte do seu amante, através da qual Mitski é o dono e o seu amante o cão que a reverencia. “Or you’re a dog and I’m your man” parece a tradução lírica direta desta secção final sem palavras, imprimindo uma ténue sensação cíclica na canção, ao retomar os versos iniciais sob uma forma mais abstrata e interpretativa na conclusão da canção.




Patrícia Moreira

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