A Garota que canta o Hoje
Cátia Mazari Oliveira, conhecida como A Garota Não, foi uma das descobertas do primeiro confinamento. Curiosamente, não surgiu numa sugestão automática das plataformas de streaming, como hoje em dia é habitual. A sua voz soou-me no rádio da cozinha, primeiro longe e confundida com barulhos caseiros. Depois, um tom grave e aveludado sobrepôs-se e prendeu-me, desde logo. Depois de agarrada ao seu timbre, prestei atenção à letra: a Garota canta o quotidiano, tentando fazer um retrato do mundo de modo muito próprio. Pela sua voz, de forma poética e genuína, viajamos pelo amor, pelo sofrimento, mas também por uma música de intervenção do nosso tempo: são cantados problemas sociais, políticos, com o objetivo de transmitir a precariedade que a maioria dos portugueses vive, com uma visão real e crua: “Não é ser do contra, é teres direito a seres aquilo que és”, diz a cantora, numa entrevista ao Público.
A Garota Não, oriunda de Setúbal, andou entre o mundo do jazz e a música popular brasileira até começar um projeto independente, que se concretizou no álbum “Rua das Marimbas, nº7”, no ano de 2019. As suas influências musicais portuguesas são notórias, entre os quais a própria destaca Zeca Afonso, Sérgio Godinho e Fausto. No entanto, o que salta à vista é uma sonoridade muito própria e que tenta chegar às pessoas de hoje.
Como sugestão, deixo duas músicas muito diferentes, escolhidas propositadamente para demonstrar a variedade desta cantautora.
“No dia do teu casamento” é a música que, para mim, até hoje, capta de forma mais verdadeira a sensação da dor-felicidade de vermos um antigo amor encontrar outro amor: “Na lágrima feliz que soltei / Ao ouvir o sim tão claro/ Igreja fora amor tão raro / Dilacerou-me dentro o peito / Só não morri por não ter jeito”. Um tema é continuamente repetido pela voz e pela guitarra; aos poucos, são adicionadas vozes e percussão, à medida que a música avança, como se fôssemos ganhando cada vez mais consciência do sofrimento que nos é expresso na canção. Como se estivéssemos cada vez mais imersos na dor. Somos transportados para uma Igreja, quando se ouve um vibrafone representando o sino. Estamos com a Garota neste casamento, e identificamo-nos com a sua angústia.
“Precariedade / Inspiras tristeza” é um dos versos da canção “80.nada”, que retrata a visão desiludida de uma jovem nascida na geração de 80, sendo hoje uma trabalhadora que, como a maioria dos jovens portugueses, vive de modo precário. A música inicia-se com um excerto de sons de manifestação, seguidos da voz da Garota, que se dirige diretamente ao seu país, como se esta estivesse nessa mesma manifestação, cantando por um megafone. Mais uma vez, a artista demonstra a sua capacidade de nos transportar para um determinado espaço e tempo. Na quadra seguinte, estando já o ouvinte mergulhado na história, passamos para um som de estúdio. A música vai-se tornando mais intensa e com subdivisões rítmicas do tempo cada vez mais presentes, como se entrássemos na espiral de dificuldades económicas que os jovens enfrentam e que a Garota vai enumerando.
Nasce assim meia hora de música que aconselho vivamente a conhecer e a partilhar. A Cátia ou a Garota (ou ambas) merecem ser ouvidas, dançadas e aplaudidas, assim que nos for possível voltar a assistir a concertos.
Sara Maia
Título do álbum: Rua das Marimbas. Nº7
Autora: A Garota Não
Artistas convidados/as: Sérgio Mendes (Guitarra acústica, elétrica, teclados, baixo, lap steel, rhodes), Santiago Olodum (percussão), Diogo Sousa (bateria), Pedro Nobre (bateria), Ana Sequeira e Carolina Inês (coros), Frankley (piano), Valter Rolo (coautoria da música “Monstro”)
Edição e ano: Edição de Autor, 2019
Produção e Masterização: Sérgio Mendes e A Garota Não.
Palavras-chave: “música portuguesa”, “música de intervenção”, “cantautora”, “atualidade”.