89 anos de vida de Nina Simone
No passado dia 21 de fevereiro celebrámos o 89ª aniversário de Nina Simone. Eunice Waymon de nascença, mais tarde Nina Simone, começou a cantar nos bares para apoiar financeiramente a família, tornando-se numa das vozes mais icónicas do mundo musical. O seu timbre grave e intenso, sempre acompanhado pela emoção, começou a ser reconhecido um pouco por todo o lado. A formação em música clássica foi a base para toda a sua criação, refletindo-se de um modo claro na forma como Simone faz uso do piano, o seu instrumento por excelência, misturando o contraponto da música clássica com o folk, o jazz e o blues. Por outro lado, Simone musicou canções dos mais variados artistas, desde Bob Dylan a Beatles ou Bob Marley, tendo a capacidade única de tornar sua qualquer canção pela qual a sua voz passava.
Muito poderemos escrever sobre a carreira de Nina e as suas diferentes fases, fases estas muito diversificadas e algumas conturbadas pelos seus problemas psicológicos. No entanto, para celebrar o movimento feminista - e continuamente lutarmos por este, que, inequivocamente, é ainda necessário -, aqui caberá refletir sobre o seu papel no movimento dos direitos civis, que se interliga profundamente com a onda feminista dos anos 60. Hoje, mais que nunca, é necessário refletir sobre a segregação racial ainda existente no século XXI. A morte de George Floyd, em 2020, acordou-nos um pouco a todos e fez-nos relembrar que a luta contra o racismo está longe de terminar. E é por essa mesma razão que é importante relembrar Nina Simone: reconhecê-la como figura central na revolução musical dos anos 60, com uma energia que lhe é única, tanto pela sua poesia bem como pelo seu ativismo político.
A sua relação com o movimento dos direitos civis representa, acima de tudo, uma busca de um significado para o seu canto. Esta busca é motivada pela morte de 4 crianças negras no dia 15 de setembro de 1963. Nessa manhã, um grupo racista e de extrema-direita bombardeou a igreja batista de Birmingham, em Alabama, um local de reunião de ativistas negros onde se juntava com frequência o jovem Martin Luther King. “Primeiro ficamos deprimidos, mas depois ficamos furiosos”, conta Nina, ao se referir ao acontecimento. Desta raiva, desta fúria pela injustiça que se vivia nasce a música - era assim que Nina procedia; apesar da sua luta contra o racismo se ter radicalizado e Nina admitir que teria sido capaz de responder com armas, respondeu com canções: vivia os acontecimentos e transformava-os em música. A partir deste momento, Simone não consegue conceber a sua criação de outra maneira - a sua arte tinha de refletir o tempo que se vivia. Pela triste ocasião do dia 15 de setembro de 1963 nasce “Mississipi Goddam”, que critica ativamente a sociedade racista da época, dando ênfase à discriminação que se viva nos estados do Sul dos EUA. Nina é violenta na sua crítica, mas ao mesmo tempo, como era seu costume, torna-a emotiva. “Todos sabem do Mississipi, raios partam / Não veem? Sei que o sentem, está tudo no ar! Não aguento muito mais esta pressão”. "Goddam": era o que todos sentiam, o que a todos apetecia dizer. Mas ninguém ousava, naquela época, usar esse tipo de vocabulário numa canção.
Contudo, Nina fê-lo. Foi revolucionário, mas era preciso sê-lo, num momento da história em que cada negro “pensa que cada dia será o seu último” - como diz a própria canção. Este propósito de defender a comunidade negra motivava Nina de uma forma colossal - a fama, um lado mais “comercial” que a sua fase inicial de composição tinha trazido começava a sufocá-la lentamente, encontrando nesta defesa do seu povo um propósito para o canto. Notemos que Nina se identificava profundamente com a comunidade negra: partilhava com eles um passado comum e vinha de uma família pobre, convivendo diariamente ao longo do seu crescimento com a segregação racial. Nina sentia o que eles sentiam. No entanto, aquando da sua infância, nada disto era falado: apenas sentido e vivido. Anos mais tarde, quando irrompem as primeiras manifestações dos direitos civis, quando se torna absolutamente necessário falar, Nina Simone compreende o seu lugar na sociedade e o seu dever para com esta - a sua música tem de passar por um envolvimento profundo, de reflexão sobre os acontecimentos: “neste período crucial das nossas vidas, em que tudo é tão desesperado e que cada dia é uma questão de sobrevivência, acho que não podemos evitar envolver-nos (...). Acho que não temos escolha.” (in “What happened, Miss Simone?”, 2015)
Um outro grande hino do movimento dos direitos civis será "Ain't Got No - I Got Life”, do revolucionário ano de 1968, um medley de duas canções do musical Hair, e que Nina adapta para o seu propósito: a intensa necessidade de, num momento como o que se vivia, os negros encontrarem a sua cultura, a sua história, querendo espicaçar-lhes a curiosidade de conhecerem esse mesmo passado. É precisamente essa procura de uma identidade afro-americana que é expressa na segunda parte da canção, como um a verdadeiro cântico à vida: “Tenho o meu cérebro, as minhas orelhas, / Tenho os meus olhos, o meu nariz, / Tenho a minha boca. / Tenho o meu sexo (...). / Tenho os meus pés, os meus dedos dos pés, / Tenho fígado, / Tenho sangue, / Tenho vida” - verificamos então uma necessidade de afirmar o ser negro, reencontrando a sua cultura que, até então, era constantemente rasurada pela história ocidental. Mas, acima de tudo, através da enumeração de partes do corpo que qualquer um de nós possui, verificamos a necessidade que o negro tem de simplesmente ser humano, com dignidade à vida como qualquer outro ser.
À partida, por que poderemos considerar Nina uma artista feminista, se acabei por descrever mais ativamente o seu papel no movimento dos direitos civis? De certa forma, é impossível separar os movimentos: os que defendiam o término da segregação racial são aqueles que também defendem uma real igualdade de género, e pareceu-me urgente trazer uma figura, que, no fundo, simboliza estas duas lutas que andam de mãos dadas nos anos 60. Por outro lado, mesmo não demonstrando de forma ativa, Nina era feminista em todos os seus atos - desafiou todos os costumes que lhe seriam destinados: estuda piano clássico, canta com a sua voz andrógena, e escolhe os temas para cantar sem esperar a aprovação dos demais, sejam temas políticos ou sociais, sejam apenas sobre aquilo que lhe vier à cabeça. Nina Simone sempre teve uma forma única de viver, e nunca se inibiu de o expressar através da música. Nunca se limitou ao padrão de artista feminina da época, desafiando todas as barreiras que lhe seriam impostas, tanto por ser negra, mas também por ser mulher.
Para Nina, “a liberdade é não ter medo”. Hoje, relembramo-la por isso mesmo. Por ser branca, nunca senti discriminação racial. Mas por ser mulher sei que ainda existem muitos desafios e muita luta para uma verdadeira igualdade de géneros. Mas são pessoas como Nina Simone que nos dão a esperança de construir um mundo melhor. Hoje, posso vestir o que me apetecer, posso ir à universidade, posso usar métodos contraceptivos. Posso expressar as minhas ideias. Hoje, tenho menos medo de viver, e, portanto, mais liberdade. Obrigada, Nina.
Sara Maia