Uma Aventura no Universo dos Flamingos
Quando comecei a descobrir o mundo da música independente portuguesa, o Luís Severo e o Coelho Radioactivo rapidamente se tornaram dois dos meus artistas preferidos. Assim, não foi de todo surpreendente que quando descobri os Flamingos, uma banda que une ambos os músicos, este se tenha rapidamente tornado um dos meus projetos favoritos do panorama musical português, mesmo só tendo um total de 7 músicas, divididas por 4 lançamentos diferentes – 3 deles adicionados este ano às plataformas de streaming (previamente encontravam-se apenas disponíveis no Bandcamp dos Flamingos).
Proveniente de Odivelas, Luís Severo inicia a sua carreira musical aos 15 anos, partilhando algumas canções no MySpace sob o alter ego “Cão da Morte” – nome proveniente não só do livro de Agatha Christie, como também da música dos Mão Morta. Começa por auto-editar um EP homónimo, em abril de 2009, e o álbum Trovas Intravenosas, um ano depois, em fevereiro de 2010. Segue-se, em 2011, o Segundo disco, ainda sem nome, que inclui uma cover da música “O Porteiro” do Coelho Radioactivo, e ainda Odissipo e o EP Fim de Verão nos dois anos seguintes. Com o álbum Cara d’Anjo, em outubro de 2015, o músico passa a utilizar o nome Luís Severo e abandona o Cão da Morte, lançando os três álbuns que a maior parte de nós conhecemos: Cara d’Anjo (2015), Luís Severo (2017) e O Sol Voltou (2019).
Já Coelho Radioactivo é o nome que, tendo sido rejeitado por uma antiga banda do músico, foi adotado por João Sarnadas para um projeto a solo. Edita o seu primeiro EP também em 2009, feito no GarageBand e captado principalmente com o microfone integrado do iMac, mostrando desde cedo as aptidões como produtor de Sarnadas (que mais tarde vem a produzir discos de Primeira Dama e João Nada). Em 2011 mostra-nos mais um EP, desta vez só de covers, gravado “às escondidas” dos autores originais das músicas: Éme, Luís Severo, João Nada e Pega Monstro. Segue-se o EP Lado B (maio 2012), o primeiro longa duração do artista Estendal (setembro 2012) – na minha opinião um dos discos mais subvalorizados da música portuguesa – e ainda, depois de mais um ou outro single, o disco Canções Mortas, em dezembro de 2014. Mais recentemente, a 18 de abril de 2022, Coelho Radioactivo lançou uma música pela primeira vez em 6 anos (excluindo projetos paralelos, como a sua faceta mais experimental na Favela Discos e em Sarnadas). “Perdidos” conta também com Os Plutónios, banda que aparece numa faixa de Canções Mortas e que já acompanhou o artista em concertos.
Os dois músicos conhecem-se em 2007, unidos pelo cantautor da editora FlorCaveira João Coração, nome artístico de Daniel de Castro Ruivo. Servindo como mentor para ambos, Daniel possibilitou uma partilha de música e uma união entre artistas que levou, mais tarde, ao surgimento dos Flamingos. Sarnadas e Severo chegaram a acompanhá-lo em palco nalguns concertos por volta de 2009, sendo ainda referido em entrevistas à banda que o músico emprestou a ambos uma grande quantidade de material.
Antes de entrar nos lançamentos de Flamingos, não posso deixar de mencionar uma música conhecida por poucos, sendo que já não são muitos os que conhecem as outras. “Surf” é a oitava faixa da compilação Ruptura Explosiva (julho 2011), uma edição conjunta da FlorCaveira e da Amor Fúria com direito a CD-R (limitado a 333 cópias, tendo eu a sorte de possuir a #34). Com participações de artistas como os Lacraus, Alex d’Alva, Pega Monstro e Samuel Úria, este disco é um pequeno tesouro cheio de surpresas – uma delas a primeira música do que futuramente seriam os Flamingos. Apesar de em entrevistas aos músicos ser referido um EP a meias a ser lançado no final de 2011, não consegui encontrar mais informação acerca deste, sendo então “Surf” a primeira música a abrir caminho para o surgimento dos Flamingos.
Assim, em setembro de 2014, o primeiro de três singles duplos da banda, constituído pelas faixas “Passeio” e “Cabanas do Bonfim”, é editado pela Gentle Records – editora portuense surgida em 2012 e que cai em inatividade após 2017, contando com artistas como Tomba Lobos (Zé Cardoso) que faz a capa deste lançamento, João Nada e Casa Assombrada. O duo mostra-nos, nestas duas músicas escritas por ambos, uma faceta pop pouco explorada nos seus projetos a solo, criando assim um novo universo dos Flamingos. “Passeio” é cantada maioritariamente por Sarnadas, juntando as vozes de ambos os músicos no refrão, e fala-nos, como indica o nome, sobre passear. Já “Cabanas do Bonfim”, das primeiras músicas de Flamingos a ser escrita e uma das minhas preferidas da banda, tem Severo como protagonista na voz, também com coros partilhados no refrão. As letras, segundo Luís Severo, descrevem um local pacífico, onde alguém que tenha uma vida de sair à noite deixa de querer excessos, preferindo permanecer nas calmas Cabanas do Bonfim: “Abre a mão roça que assim não fazes troça / Depois escolhe o que for melhor para ti / Só não esperes por ninguém que há coisas que só eu sei / Quando tu foges para as Cabanas do Bonfim”. Um excelente começo para os Flamingos, este lançamento ajuda-nos a perceber o rumo da banda: uma leveza instrumental, com uma base de drum machine, guitarras, baixo e sintetizadores simples, cuja beleza se encontra, do meu ponto de vista, em todos os pequenos detalhes que não só se escondem nestas partes como também as rodeiam, sejam eles outras percussões, breves melodias ou sonoridades que constroem o ambiente pop de Flamingos.
O segundo lançamento da banda foge à regra – Natal Gentil 1 é uma colaboração com Moxila (Mariana Pita), artista multidisciplinar atualmente inserida na editora lisboeta Cafetra Records, tendo editado recentemente o álbum Éme e Moxila. Lançado pela Gentle em dezembro de 2014, na altura editora de Moxila e dos Flamingos, o single inicia uma tradição de colaborações natalícia, com um total de 4 edições entre 2014 e 2017, para as quais dois artistas fazem uma música cada, mas interpretam ambas. Os Flamingos contribuíram com “Videmonte”, uma canção acústica de cariz natalício que até hoje é tocada frequentemente por Luís Severo nos seus concertos. Recheada de vozes, incluindo a de Moxila, “Videmonte” leva-nos para uma sala de lareira acesa, em família, enquanto se fala de férias no monte: “Nunca fui a Videmonte ver o Mondego de fronte / Ver a família da terra / Já lá diz a mãe ao pai / «Um dia fazemos ponte e vamos a Videmonte / Perto da serra da estrela»". O instrumental é o mais despido que encontramos na discografia de Flamingos, aparentemente com apenas uma guitarra, um shaker, e as inúmeras camadas de vozes.
No ano seguinte vemos a edição de Souvenir em abril de 2015, com capa do João Coração e cujas músicas reafirmam a qualidade do duo, caso alguém ainda estivesse a duvidar desta. “Souvenir” é uma canção com uma percussão espaçada, simples e constante que nos embala junto das várias guitarras que ouvimos, com uma melancolia nostálgica que combina perfeitamente com as letras da música. Alternando versos, Coelho e Luís vão-nos contando, numa voz suave, sobre um cenário vazio. Exprimem a falta que sentem do(s) destinatário(s) desta canção – “Se a tua falta me escapar / Deixaste no teu lugar / Um souvenir para lembrar / Que te hei de visitar” – sendo referidos nomes de amigos emigrados dos músicos, como o artista João Sobral (João Nada): “Oh Sobral que já vais longe / Dá notícias lá do frio / Não deixes de ser a ponte / Deste grupo tão gentil”. Já a segunda faixa do single, “Dias de Calor”, volta a uma simplicidade sonora e temática mas rica em detalhes que já conhecíamos do primeiro lançamento da banda. Se em “Videmonte” fomos transportados para o inverno, em “Dias de Calor”, como indica o nome, somos transportados para um Verão pós-breakup, numa sensação agridoce que é refletida na mudança harmónica na bridge da canção, onde Severo canta: “Que até já nem me dói / Saber com quem fantasias à noite / Oh, como é bom ter um novo par / No calor destes dias”. Com um instrumental que reforça a faceta pop dos cantautores, esta segunda canção apresenta ainda uma forte lírica, com estrofes como: “Coração sobe à cabeça / Deixa o que não quer / Vai batendo depressa / Pelo amor de quem me quer / Deixar adormecer / Para ti nunca tive jeito / És assim, nada a perder”.
Já no fim de 2015, novamente no mês de dezembro, a banda edita o seu último lançamento à data, Lições de Café. Possivelmente o meu single preferido dos Flamingos, conta com as músicas “Lições de Café” e “Slow”, acompanhadas por uma capa do próprio João Sarnadas que é inspirada no álbum Surf’s Up dos Beach Boys (irónico tendo em conta que a primeira música conjunta dos cantautores é intitulada “Surf”). “Lições de Café” será das canções mais aceleradas dos Flamingos, trazendo de volta os sintetizadores e drum machines que ouvimos em Passeio. Luís Severo narra-nos o que poderá ser interpretado como uma saída, com a atenção concentrada numa rapariga: “Se aparecer ao meu lado / Aquela que eu gosto / Vou pedir-lhe um cigarro / Eu só queria saber / Se ela ainda tem namorado”. Para contrastar este ritmo agitado, somos confrontados com “Slow”, uma balada daquelas que nos levam a imaginar como seria ouvi-la na companhia de outra pessoa. Ouvimos os Flamingos a cantar “Peito fora, noite dentro / O teu corpo em movimento” e pintamos imediatamente esse cenário na nossa cabeça, enquanto somos hipnotizados por um instrumental cuidadoso, sem nada em excesso, mas ao qual também não falta nada. Com o adicionar de mais camadas, a música passa por um clímax e acaba por voltar ao seu ponto inicial de tranquilidade, terminando assim a noite imaginada ( “Vamos dançar um slow / Até passar da madrugada”), assim como o single, e a discografia dos Flamingos que temos disponível até hoje.
Voltando a um futuro seis anos e meio depois de Lições de Café, tanto Coelho Radioactivo como Luís Severo encontram-se atualmente a preparar discos a solo, mas ambos já manifestaram vontade de voltar a lançar música juntos. Apenas nos resta aguardar e partilhar com quem ainda não conhece este fantástico mundo que os Flamingos montaram.
Afonso Mateus