O Imperdível Regresso dos Glockenwise
Fotografia de Renato Cruz Santos, retirada do website da Culturgest (https://www.culturgest.pt/pt/programacao/gotico-portugues-glockenwise/)
Fevereiro ficou mais feliz com o lançamento do disco Gótico Português da banda minhota Glockenwise. Este, que é o quinto álbum desta banda, formada em 2006, em Barcelos, sucede a Plástico (2018), disco que causou furor e garantiu a Cláudio Tavares (bateria), Nuno Rodrigues (vocalista e guitarrista), Rafael Ferreira (guitarrista) e Rui Fiúsa (baixo) um lugar nos circuitos do rock português.
Gótico Português oferece-nos um olhar perspicaz sobre regiões que, de certa forma, foram deixadas à margem. Em particular, recorrendo a um exemplo que lhes é próximo, os Glockenwise revisitam o lugar onde cresceram e do qual outrora quiseram “fugir”, sendo esta aliás uma temática frequente na sua discografia anterior e que está também presente neste álbum: “Ainda não sabia andar / Já esperava a coisa amada / Já aguardava passagem /Que me levasse da margem” (“Margem”).
Tal como descrito por Nuno Rodrigues, vocalista e guitarrista, numa entrevista à Lusa[1], o desejo de deixar Barcelos motivou, na primeira década deste milénio, a atividade musical dos então adolescentes músicos, permitindo-lhes perspetivar experiências fora da cidade natal. Hoje, estes músicos desenvolvem as suas atividades profissionais fora de Barcelos, localizando-se, nas palavras de Nuno Rodrigues, a “meia distância, com um pé na margem e outro no centro, muitas vezes sem saber bem aonde é que se pertence”[1].
A voz de Nuno Rodrigues discorre sobre as suas origens, lutando por conciliar o papel deste espaço, que é físico, imaginário e identitário[2], com outras dimensões da vida. Reflete, de forma consciente e intencional, sobre a sua relação com Barcelos, uma relação que, para Nuno Rodrigues, sendo “crítica“, não é de “amor-ódio, porque é muito mais complexo do que isso”[2].
Ao longo das 11 faixas que perfazem este disco, encontramos alusões a situações de fuga[3] (“Primеira aberta e saio logo a voar sem parar” [“Natureza”]), ao sentimento de pertença (“Tentar, amor, manter / (…) A vida inteira num lugar/ A minha fica aqui” [“Vida Vã”]) e ao sentimento de não pertença, este último sintetizado nas palavras de Rafael Ferreira: “Estamos na margem da margem – já não fazemos bem parte desse quotidiano”[4].
As letras das músicas que compõem Gótico Português são todas da autoria do vocalista, Nuno Rodrigues, à exceção de “Água morrente”, um poema de Camilo Pessanha. Há uma certa tristeza, nas palavras cantadas por Nuno Rodrigues, neste álbum que se constitui como resposta à pergunta: “Que disco se escreve quando só temos vontade de chorar?”[5]. Efetivamente, em alguns versos, vemos uma expressão clara de angústia (“Não pára de apertar / Aqui de peito aberto” [“Lodo”]), revolta (“Dar por vencida / Esta vida não presta”), solidão (“Pеssimismos para acabar / Tão sós” [“Besta”]) e um certo pessimismo. As letras são reflexivas e vários versos espelham um processo profundo de autocrítica (“Contar comigo / P'ra ser uma besta” [“Besta”]) e de questionamento do eu (“Passei a noite inteira a decidir o que sou sem parar” [“Natureza”]).
Em paralelo, os Glockenwise descrevem o ambiente de certos lugares que os músicos consideram estar, de certa forma, à margem. Em várias entrevistas, os membros da banda realçam a capacidade de resolução dos problemas de forma criativa, apesar das limitações de várias naturezas impostas às pessoas que lá habitam. Valorizam também a liberdade resultante da distância ao poder centralizado e um ambiente algo bizarro, que se concretiza nas tradições regionais, manifestações culturais, na arte popular, santos e crenças populares.
Os elementos extramusicais deste disco têm um papel essencial na caracterização destes lugares mais periféricos. O título é uma analogia ao género literário e artístico Gótico Americano, procurando remeter-nos para um ambiente insólito e, de certo modo, esquisito. A capa do álbum, fotografada por Renato Cruz Santos, captura na perfeição o ambiente de estranheza que os Glockenwise associam às Margens, conciliando uma dimensão iminentemente prática e elementos terrenos, como um armazém, com bizarras figuras que compõem um rancho folclórico de gesso do Museu de Lamas.
Por fim, a banda incluiu no álbum três excertos de uma entrevista à escultora e ceramista Rosa Ramalho, que, segundo Nuno Rodrigues, “conseguiu traduzir por palavras dela coisas que nós tínhamos dificuldade em encontrar palavras para dizer”.[2] Nestes três momentos, a ceramista natural de Barcelos desconstrói algumas ideias pré-feitas sobre habitantes das zonas rurais portuguesas[6], demonstrando uma visão crítica sobre Portugal rural, que, pelas palavras do vocalista dos Glockenwise, “Tem tudo que ver connosco, com esta maneira de poder olhar criticamente para aquilo que somos e o que nos formou”[1]. De facto, o grupo demarca-se de um Portugal uniforme, estilizado, e da adoção de símbolos regionais sem critério, referindo que “isto não é só lenços de Viana, há outras coisas muito mais livres”[2].
Este álbum, conceptualmente muito rico, apresenta uma temática original, que é uma lufada de ar fresco no universo da música pop rock, que nos cansa com a repetição de histórias de amor não correspondido ou com a sublimação de amores estereotipados e francamente irrealistas. Os Glockenwise aproximam-se do Art Rock quando afirmam que “Não queremos fazer música pela música. Há um interesse discursivo naquilo que fazemos que está intimamente ligado com uma intenção artística”[2]. A atribuição de tamanha relevância à dimensão conceptual do álbum permite que este não fique limitado à sua vertente musical.
Apesar de em termos temáticos este álbum ser significativamente diferente dos seus trabalhos anteriores, os Glockenwise optam por manter a estética sonora que lhes é característica, como os próprios definem, um “rock despretensioso”: o pulsar da bateria muito presente, as teclas com melodias irresistíveis, os apontamentos calculados das guitarras, os versos comedidos que desembocam em refrões energizantes e a voz suave de Nuno Rodrigues, acompanhada de coros discretos. É também de realçar que o álbum Gótico Português foi gravado num estudo caseiro, em estilo DIY, e resulta de uma edição de autor, que marca o lançamento da editora Vida Vã.
É um álbum com uma grande coerência interna e que faz sentido como um todo, pelo que aconselho a sua audição integral. No entanto, não posso deixar de destacar em particular a primeira faixa do álbum, “Margem”, e a última, “Vida Vã”, músicas densas e belas. Os Glockenwise estão a apresentar o Gótico Português em vários pontos do país e, depois dos concertos em Guimarães, Viseu e Aveiro, temos ainda oportunidade de os ouvir em Lisboa (12/05), Braga (20/05) e Porto (01/07). É imperdível!
Sara Madeira Cal
[1] https://mag.sapo.pt/musica/artigos/novo-album-dos-glockenwise-celebra-as-origens-da-banda-ouca-aqui-gotico-portugues
[2] https://www.youtube.com/watch?v=Cju0xnYIgXE&t=12s
[3] https://www.culturgest.pt/pt/programacao/gotico-portugues-glockenwise/
[4] https://thresholdmagazine.pt/2023/03/glockenwise-em-entrevista-tentamos-trazer-alguns-pontos-de-interesse-que-nao-sao-tao-comuns-a-nossa-musica.html
[5] https://media.rtp.pt/antena3/ouvir/glockenwise/
[6] https://www.publico.pt/2023/02/16/culturaipsilon/noticia/margem-glockenwise-melancolia-2038908