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LUTA LIVRE e a reinvenção da música de intervenção

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É dia 1 de maio e estou sentada na Alameda. Um sol meigo aquece-me as costas e descanso os pés da subida da Almirante de Reis. À minha volta, toda a gente conversa alegremente, ouvem-se risos e crianças a brincar. Os mais velhos comentam, com um brilho nos olhos, que, desde o primeiro Dia do Trabalhador em Portugal, há 50 anos, poucas vezes viram a Alameda tão cheia.  Parece que é o primeiro dia de Primavera, não há vento e, apesar de amanhã ser dia de trabalho, ninguém parece querer ir para casa, como se fosse possível prolongar aquela tarde para sempre. Do cimo da Alameda, veem-se milhares de pessoas.


Foi uma festa bonita e, como em todas as festas bonitas, não faltou música. Depois do comício, despedimo-nos deste dia de luta e de festa ao som de LUTA LIVRE, o projeto mais recente do músico Luís Varatojo, integrante de inúmeros grupos musicais (tais como Peste & Sida, Despe e Siga, Linha da Frente e A Naifa), que se apresentou no palco montado no topo da Alameda acompanhado de Ivo Palitos, Orlanda Guilande e Pedro Mourato.


Ouvi pela primeira vez LUTA LIVRE no final do ano passado, quando me deparei, de forma mais ou menos aleatória, com Defesa Pessoal, um álbum editado em março de 2023. Fiquei, quase de imediato, rendida a estes 36 minutos de música que resultam de um olhar crítico e aguçado sobre a realidade portuguesa e sobre as injustiças e dificuldades do dia a dia de centenas de famílias, trabalhadores e estudantes. No mesmo dia, ouvi Técnicas de Combate, o primeiro álbum de LUTA LIVRE, lançado em 2021, e foi crescendo o meu apego a estas canções com letras inteligentes e de caráter interventivo e com uma sonoridade eclética, misturando elementos de rock, jazz e hip hop. 


Hoje, digo mesmo que a música de LUTA LIVRE é irresistível. Em primeiro lugar, por causa da qualidade das letras: Luís Varatojo encontrou uma maneira de expor, de forma perspicaz (e, muitas vezes, irónica), a sua visão sobre questões muito atuais, nomeadamente sobre a crise da habitação, trabalho precário, guerra e degradação dos direitos sociais.


Ao ouvir LUTA LIVRE, identificamo-nos com as palavras que Luís Varatojo canta – sabemos que o mundo é assim -, porque as suas letras partem da realidade concreta e resultam de uma observação atenta dos acontecimentos políticos e sociais. Numa entrevista ao Público[1], Luís Varatojo partilhou parte do seu processo criativo, ao explicar como surgiu este novo projeto: “(…) comecei a escrever alguns textos sobre notícias que ia lendo no jornal, fui acumulando esses textos e ao mesmo tempo comecei a fazer uns instrumentais com base em samples que fui fazendo em discos de jazz. Juntei uma a coisa à outra para ver o que dava”.


Ouvir LUTA LIVRE é uma proposta para refletirmos sobre um conjunto de temas económicos, sociais e políticos. Por exemplo, em “Panela de Pressão”, Luís Varatojo discorre sobre o aumento insuportável do custo de vida; em “Escravo do Patrão”, canta sobre as novas formas de trabalho precário; e a canção “T0 no Barreiro” é sobre a crise da habitação. Nas canções “Iniquidade” e “Conto Do Vigário”, Varatojo expõe a desigualdade entre quem tem “rendimentos extraordinários” ou “dividendos milionários” e quem corta “no leite e no pão para pagar a prestação”.


Nas músicas de LUTA LIVRE há também reflexões interessantes sobre as questões ambientais e sobre a urgência de mudança (“O Problema É O Sistema”), sobre racismo (“Mentalidades Sem Cortes”) e sobre como a política não se cinge ao momento do voto, realçando a importância da organização coletiva (“Política”).


Tendo a palavra um lugar privilegiado em LUTA LIVRE, Luís Varatojo não descura a qualidade da música que acompanha as suas palavras, muitas vezes em registo de spoken word. A sua música tem sempre uma sonoridade muito cool, ritmada, e consegue conjugar de forma harmoniosa uma multiplicidade de géneros que poucas vezes se cruzam. O músico recorre também, em algumas faixas, a elementos extramusicais – sirenes, gravações de voz de representantes políticos, sons captados em manifestações – que ilustram os argumentos que vai tecendo nas suas letras, adicionando uma nova camada de significados que enriquece a música. Recomendo também vivamente a visualização dos vídeos que acompanham algumas das músicas lançadas.


De forma mais ou menos intencional, em LUTA LIVRE, Luís Varatojo propõe-se a reinventar a música de intervenção. As suas palavras semeiam um sentimento de coletivo, de identificação, e dão voz a várias gerações de portugueses e portuguesas, assim como às injustiças e dificuldades que vivem. Para fãs de música de intervenção, é simplesmente imperdível!



Sara Cal




[1] https://www.publico.pt/2020/05/10/culturaipsilon/noticia/luta-livre-sao-novas-cancoes-intervencao-mao-luis-varatojo-1915915



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