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Lisboa, Fado, Progressismo e música portuguesa

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Sou a pessoa menos nacionalista que podem conhecer, mas a propósito de estarmos em alturas do 10 de junho, ocorreu-me escrever sobre a música portuguesa. Num país cuja história é impossível contar sem a ajuda da música, nunca é demais realçar o papel desta na sociedade lusitana.

Será impossível dizer exatamente como, quando e onde se deu o início da música portuguesa. As canções com mais história que nos venham à memória talvez sejam as canções típicas de diferentes regiões como “Oh Rama, oh que linda Rama”, “Oh Malhão, Malhão!”, “Bailinho da Madeira” ou “Tiro liro liro”, e que mais tarde se tornaram músicas típicas não só de uma região mas de todo o país.

Depois, há o momento em que Portugal começa a levar a sua música a outros cantos do mundo, quando se estreia no Festival da Eurovisão em 1964. É de saltar à vista a forma como a religião liderava a tendência, o que refletia o quão católico era o país. É possível afirmá-lo logo pela primeira canção que nos representou, “Oração” de António Calvário. Logo no ano a seguir, “Sol de Inverno” de Simone de Oliveira, também se notam em breves passagens analogias ao catolicismo, “Sabe Deus que quis / contigo ser feliz”.

Mas não só de chamamentos a Deus se fizeram as nossas canções. Se na década de 60 Portugal dedica músicas a Deus, na década seguinte preferiu música de intervenção e exaltações pela liberdade como “A Festa da Vida” de Carlos Mendes em 1972, “Tourada” de Fernando Tordo em 1973 e o auge de “E Depois do Adeus” de Paulo de Carvalho em 1974.

Era possível escrever um livro apenas sobre a história da música de intervenção em Portugal. Estas canções vieram provar como a música portuguesa também pode ser uma arma! De expoentes como Zeca Afonso, José Mário Branco e Sérgio Godinho, foram elaboradas num ambiente opressor, com metáforas tão belas que denunciavam a falta de liberdade e a pobreza, e serviram para mobilizar toda a população: “Eles comem tudo / Eles comem tudo e não deixam nada”. A música de intervenção em Portugal não se cingiu a senhas de revolução ou a canções censuradas, na verdade esta remonta a toda a história nacional. Ainda hoje, a canção “Parva que Sou” dos Deolinda, “Sou da geração sem remuneração / E nem me incomoda esta condição / Que parva que eu sou”, composta em tempos de troika e FMI, veio mostrar que a música de intervenção não se extinguiu em ‘74.

Há também que valorizar a forma como Portugal soube ser pioneiro, ao levar à Eurovisão as Doce, uma das primeiras girl bands da Europa, um grupo ousado que trouxe algo nunca antes visto e que foi alvo da masculinidade tóxica da sociedade patriarcal dos anos 80. Neste ambiente machista da altura, aparecerem 4 mulheres de coragem a cantar “OK, OK Põe-me KO / OK, OK Se fores capaz”? Dificilmente haverá um ícone feminista maior do que este… Também António Variações, um dos maiores artistas nacionais que alguma vez existiu, foi pioneiro com um estilo inovador, fora da caixa, com as letras mais criativas de sempre, que toda a gente estranhou ao ouvir pela primeira vez. Estas duas estrelas, muito recentemente, deram origem a dois filmes homenageadores: “Variações” e “Bem Bom”.

É interessante avaliar a forma como a história se repete…. Quando Variações chegou, toda a gente o estranhou, algo muito semelhante ao que acontece com artistas atuais como Conan Osíris, sendo que António Variações é uma grande influência para este artista. Conan Osíris talvez seja a maior cara do progressismo musical em Portugal: ele em si, é um estilo só e único. Ao início há a tendência a achar que a sua música não faz sentido e que as letras são rudimentares. Somos rápidos a julgar algo que nos é estranho, quando a sua música é, na verdade, inovadora. Quem seria capaz de juntar 1001 estilos numa só canção como ele o fez? De pegar em metáforas do dia-a-dia e dar-lhes um significado escondido por decifrar? Conan Osíris está 100 anos à frente do nosso tempo.

Não poderia deixar passar a música portuguesa sem falar de Fado. Dificilmente haverá uma estrela do Fado que ultrapasse a maior diva que alguma vez pisou o planeta, Amália Rodrigues. Esta exportou a nossa cultura por todo o mundo, e é ainda hoje recordista de vendas, com mais de 1 milhão de discos. Amália veio mostrar como a cultura nacional e a língua portuguesa, na verdade, não são somente “nossas”, são de todos os que nela se quiserem integrar venham de onde vierem, não são dois círculos fechados e sem aberturas, que refletem apenas o preto e o branco. Amália cantou fados em inglês, em italiano por este mundo fora. Veio demonstrar que um Fado que não seja cantado em português não implica que este perca a sua essência e a sua raiz, nem que deixe de ser 100% português. Anos mais tarde, em 2011, já mais de 10 anos depois da sua morte, chega o momento em que a UNESCO considerou o Fado Património Imaterial da Humanidade.

10 de junho é também dia da morte de Camões. Muitos foram os poemas de Camões que mais tarde viriam a dar origem a letras de vários fados. A própria diva do Fado possui um EP intitulado "Amália canta Luís de Camões", o que me faz poder afirmar que o Fado pode ser considerado o género musical mais poético que alguma vez existiu.

Uma das maiores estrelas do Fado do século XXI, Ana Moura, e também uma das recordistas de vendas nacionais, conseguiu nos seus últimos lançamentos fazer algo inesperado e que resultou tão bem: misturar traços de Fado com música africana. Surgem influências do seu atual companheiro Pedro Mafama, que traz nuances da sua carreira a solo para os novos singles de Ana Moura, “Andorinhas” e “Jacarandá”, muito diferentes de clássicos como "Os Búzios" da autoria de Jorge Fernando, lançado em 2007. Assim como Amália e Conan Osíris, também Ana Moura foi mais uma artista que conseguiu provar como o progressismo se aplica à música, e como os estilos se vão refazendo, adaptando e transformando ao longo do tempo e do espaço em que estão presentes. Estas duas caras do progressismo musical, Ana Moura e Conan Osíris, possuem um dueto brilhante "Vinte Vinte" que espelha isso mesmo.

Talvez um dos maiores exemplos do progressismo no Fado sejam os Fado Bicha. Devo dizer que acho impressionante a mistura de elementos conservadores com elementos progressistas em qualquer área. Os Fado Bicha foram capazes de pegar num género musical caracterizado como “conservador” e desenvolvê-lo através das práticas LGBTQIA+ e temáticas de género e sexualidade, uma mistura algo improvável, mas fenomenal! Isto demonstra como a “modernidade” se alia com o “passado”, como as “novas tecnologias” se aliam aos “métodos artesanais”, como ambas se complementam.

É impossível falar de Fados sem falar de Lisboa. Lisboa sempre foi a preferida em tudo o que toca a Fados, é oficialmente uma das cidades mais cantadas do mundo "Se uma gaivota viesse / trazer-me o céu de Lisboa / no desenho que fizesse". Uma pessoa oriunda doutro país será capaz de conhecer a cidade de Lisboa só através dos seus Fados, que mais tarde a poderão levar a conhecer a Casa-Museu Amália Rodrigues ou as casas de fados de Alfama. É difícil encontrar um Fado da Amália que no seu conteúdo lírico não faça breves alusões a terras lisboetas, “Lisboa não sejas francesa”, “Cheira bem, cheira a Lisboa”. É como se toda a cidade fosse decomposta e se abordassem todos os seus componentes desde o Tejo, Alfama, Bairro Alto ou o Rossio: “Lisboa cheira aos cafés do Rossio / O Fado cheira sempre a solidão”. Desde o momento em que nas Marchas de Santo António, a 13 de junho, cada bairro tem o seu próprio Fado, até ao momento em que “Lisboa Menina e Moça” é considerada a música oficial da cidade de Lisboa após a morte de Carlos do Carmo, ou ainda como quando todos os dias se ouve sempre uma cantiga fadista ao subir a Rua Garrett a caminho do Chiado.

Mas as analogias a Lisboa não se ficaram pelo século passado. Ainda atualmente, canções do nosso dia-a-dia que ouvimos regularmente ao ligar o rádio continuam a recorrer a musas lisboetas. “Portas do Sol” de Nena, uma balada pop com vibes fadistas, aborda o amor através do olho da cidade de Lisboa, decompondo-a em pequenos sítios marcantes “Passo pelo Chiado / História em todo lado, o que tremeu / Um dia meu amado / Agora passado, no Rossio”. Assim como “P’ra a frente é que é Lisboa” de Os Quatro e Meia, que também alberga traços do fado português na sua composição, conseguindo fazê-lo de uma forma alegre: “Levo o dia numa boa / que p'ra frente é que é Lisboa!”.

Mas a propósito de progressismo, então para fechar, não resisto a não falar de… MARO! Um supertalento nacional com um timbre muito característico, que estudou nos EUA e possui uma sonoridade extremamente internacional. MARO conseguiu pegar numa palavra “unicamente portuguesa” – saudade – e dá-la ao título duma canção que é cantada em português e em inglês. À partida poderá parecer estranho, mas confesso que dificilmente me ocorrerá uma escolha artística tão inteligente como esta. Uma canção que levámos à Europa e que demonstra como a língua e a cultura não são só nossas, não só dos portugueses, são de todos. Uma canção que prova que a língua não define a cultura, e que há milhões de outros fatores dentro de uma cultura para além desta. A língua não é só um conjunto de palavras e significados de um só sítio, esta alberga imensas influências de outras culturas, outras linguagens de todas as pessoas que por lá passaram. Uma canção chamada “saudade, saudade” que só porque não é cantada totalmente em português não quer dizer que não seja menos portuguesa. A música portuguesa é, na verdade, internacional.

Um país unido pela música, mas onde ainda assim, esta, aliada ao mundo da cultura, continua a sofrer tempos de precariedade. Mas isso passaríamos o resto da tarde a discutir…


Jorge Tabuada​

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