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Humanos

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Em dezembro de 2004, ano fantástico tornado catástrofe, o espírito da comunidade estava num all-time low, num país onde o desporto-rei não se classifica muito abaixo do Cristo Rei, mas de certeza acima do bolo-rei, e os gregos, raia miúda como nós, pareciam ter sido os responsáveis por essa transição maníaco-depressiva. Aproximava-se agora a altura do elevado, do divino. O que chegou a quarenta mil lares, a acreditar na página da Wikipédia, foi o inverso desse conceito. Descrentes, os Humanos tinham lançado o seu álbum. Uma espécie de supergrupo, a banda juntava David Fonseca (dos Silence 4), Manuela Azevedo, Hélder Gonçalves (dos Clã), Sérgio Nascimento (da banda de Sérgio Godinho), Nuno Rafael, João Cardoso e ainda um trunfo secreto (chamemos-lhe por agora Sr. C.), para gravar inéditos de António Variações que tinham sido descobertos.

Das músicas que não foram singles, a que mais nos deu um brilhozinho nos olhos foi “Na lama”, que começa com um teclado new wave, muito Elvis Costello, onde os arpejos dos teclados são tecidos contra o ataque de umas guitarras, num conjunto dissonante de acordo com o libreto (“Estou no lado / Estou no sítio / Mal-afamado / Estou esquisito"). Outra das músicas cantada por David Fonseca é “Não me consumas”, um exemplo acabado de power pop de uns acordes de guitarra orelhudos (o leitor curioso poderá consultar como audiografia secundária Lapalco, de Brendan Benson) e letras cáusticas.

Falando em Elvis Costello, não podemos deixar de saudar o toque de Encyclopédistes em todo o projecto e principalmente na escolha dos arranjos, que concentram em cerca de meia hora forças muito poderosas da história da música alternativa.

A voz de Manuela Azevedo tem em “Amor de conserva" tal poder de sedução, o beat é tão delicado na sua decadência, o arranjo completamente contemporâneo (lembramo-nos dos Rapture e dos Yeah Yeah Yeahs), com uma guitarra clássica com roupagem moderna, que pensamos que são nestas noites evocadas pela atmosfera da música que queremos abrir as nossas latas e falar-lhes com essa linguagem ambígua (“Porque o nosso amor / É uma voz que desafina / Que sabe que nunca atina / Mas que não se quer calar”).

Em assuntos de coração, “Na teia” fornece ainda linhas gerais para conquista e uso de novos amantes. O primeiro passo nesta atracção parece ser a dissolução do eu (“Vais perder a confiança / Vais perder a segurança / Que tu tens em ti / Olha bem para mim”). Quando chegamos ao último verso, aquilo que começou como música tradicional portuguesa, nas guitarras e especialmente na parte rítmica, tornou-se um estranho híbrido, muito devido a uma harmónica que nos lembra os blues dos Rolling Stones. Em “A culpa é da vontade”, o mundo natural, alheio, é apresentado como coisa própria, não mero álibi que pudesse desresponsabilizar/desumanizar o prazer, essa criação mútua, social, pelo qual respondemos e verdadeiramente usufruímos.

Lembramo-nos do flagelo (a palavra é exacta) da sida, que caiu, primeiro no demimonde, depois por todo o mundo. A morte é aqui conceito-chave e um que irá trespassar as restantes músicas. O piano de “Rugas”, aterradora invasão barroca, rapidamente se transforma num affair bailante, e se nos propele nalguma direcção é a temporal. Este experimentalismo é caro, porque abandona alguma da excessiva leveza de outros temas, mas as belíssimas vozes do dueto balizam-nos num mundo que não é completamente estrangeiro. Os coros iniciais e o riff de guitarra (Dirty Projectors uns bons anos antes dos seus trabalhos principais) em “Já não sou quem era” anunciam-nos uma morte (“Já não fico à espera mais… / De ver acender essa luz que me quer ofuscar”). Os coros que enredeiam esta visão mortal são magníficos (“Perdi as ilusões / Conheço as limitações”) e a música faz bom uso das dinâmicas. O fim chega-nos, signed, sealed and delivered, na última canção, a trágica e críptica “Adeus que me vou embora”.

Resta falar do rasgo deste projecto, a talha dourada que é arca e carcaça desta embarcação. Seja dada a palavra a “Maria Albertina”: uma bateria que arredondamos como sixteen beat, um arpejador, palmas, um woo! – este é o estado do indie na nação e, tal como nela, em todas as outras. É agora que rodam o espelho contra nós, que o clarão nos assombra: “Maria Albertina / Deixa que eu te diga…”. Só o passar dos anos nos pode ter parado de entrar em histeria colectiva ao ouvir esta frase. Camané?… Que voz é esta, que ideia genial de pôr o fado ao serviço da máquina pop, do clash do tradicional (“Que é cá da terra / E tem muito encanto”) com o moderno? Os pêlos enriçam-se, as costas estremecem nos últimos “Maria Albertina…”. A ideia, claro, tem fundamento e motivação histórica no próprio António Variações, que terminou o seu “Anjo da Guarda”, de 1982, com “Voz-Amália-de-nós”.

Havia outras oportunidades de nos tornarmos iniciados? Sim, falemos da obra-prima do álbum, a vontade de viver whitmaniana tornada matéria sonora e que começa com 4 (quatro) batidas precisas até que esse portento de voz comece a cantar: (“Vou viver / Até quando eu não sei / Que me importa o que serei / Quero é viver”). Que ganas de explanar aqui todo o poema, fantástica encantação onde Variações expõe e se agarra à vida, um dos pólos de todo o trabalho, onde noutras músicas, como vimos, ele é igualmente assombrado pela morte. Em vez disso, outra exploração desse dual:

I am the poet of the Body and I am the poet of the Soul, The pleasures of heaven are with me and the pains of hell are with me, The first I graft and increase upon myself, the latter I translate into a new tongue.

Walt Whitman, “Song of Myself, 21”

No reino dos prazeres musicais temos o cruzamento da voz de Camané com o discurso do riff de guitarra (Franz Ferdinand, tudo quanto se convencionou chamar o indie rock dos 00s), que nos ilude na sensação de chegar sempre a notas mais altas (“Sempre uma curiosidade / Que me desperta com a idade”), ou o momento quando o cantor só tem o piano como acompanhamento e nos sentimos próximos de uma revelação. Quando os outros instrumentos voltam, Camané já partiu e lançam-se num outro orquestral tão luzidio, tão claro, que não sabemos se vivemos ainda ou onde.

[O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.]


Francisco Fernandes​

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