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Descobertas de Junho

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Muitas vezes, dou por mim a ouvir uma música pela vigésima vez no mesmo dia. É um hábito antigo este meu de ouvir certas músicas incessantemente, como se, naquele momento, todas as outras tivessem perdido o interesse.


Acho que o faço inconscientemente na expectativa de descobrir um novo pormenor, uma nota, uma palavra, uma harmonia que me faça querer voltar ao início da canção. Algumas músicas parecem exigir um tempo indefinido até que a novidade se esgote. E eu gosto de ouvi-las, reouvi-las, decorá-las, de conhecer as suas pequenas subtilezas.


Na última semana, revisitei duas músicas com as quais me tinha cruzado umas semanas antes. Passei vários dias a cantarolá-las, alternando entre uma e outra, e a ouvi-las nas pausas de almoço, no autocarro, antes de dormir.


Uma das músicas é da autoria de Francisco Fontes e tem o nome “Cosmopolita”. Este tema integra o primeiro disco deste músico, que será lançado ainda em 2022, na sequência do lançamento do EP Gravidade, no início de 2021.


Este tema, gravado e editado pela recentemente criada Empresa Jarda, foi composto na sequência de o músico ter vindo viver para Lisboa e parece refletir sobre a experiência de habitar esta nova cidade. “Sou trapezista na sua teia / Um cosmopolita”, canta-nos Francisco Fontes, com o seu timbre doce. Num ritmo desacelerado, o cantor destila cada verso e sopra as palavras com despreendimento e simplicidade muito bonita.


Durante quatro minutos, a voz de Francisco Fontes, sempre serena e suave, conduz-nos pelo ambiente que vai sendo criado pelo conjunto dos instrumentos. A presença discreta da guitarra, do baixo e da bateria complementa-se com intervenções de instrumentos de sopros, que vão pontuando os silêncios de Francisco. O ambiente musical que vai sendo construído prenuncia o resto da música, mas o refrão surpreende-nos com uma melodia muito bela e que vicia qualquer ouvinte: “Se isto é um sítio onde posso ver / O que não condiz a condizer”


Recomendo vivamente a audição deste tema, que pode ser acompanhado do respetivo videoclipe. Resta-nos aguardar pelo álbum de Francisco Fontes, esperando que o seu lançamento esteja para breve.


Na semana passada, por razões mais ou menos aleatórias, tive a sorte de reencontrar, numa playlist antiga, um tema de Bié. Bié é o projeto musical de Rafael Fernandes, que após editar, em 2017, o EP Desert Venice e, em 2018, o álbum Space Inside Space, lançou, em maio deste ano, o tema “Linguagem da Respiração”.


O que me fascina mais nesta canção é a sua energia contagiante. Parece que já a ouvimos antes, que é uma espécie de banda sonora dos dias felizes. A voz de Bié, que emerge como elemento central na canção, é acompanhada por guitarra, bateria e um quarteto de cordas e, depois do enigmático refrão, ouvimos um descontraído solo de guitarra.


Escrever em português favorece muito o compositor. A letra é ponderada e a escolha das palavras elegante. Bié cria tantos sentidos diferentes para os seus versos e, apesar de nem sempre entendermos o que nos quer dizer e de haver tantas interpretações possíveis, identificamo-nos com a escolha das palavras, que é tudo menos aleatória. Durante quase toda a música, Bié repete e brinca com o ditongo “ão”: parece ter encontrado todas as palavras bonitas com essa terminação, que terá guardado cuidadosamente em forma de verso.


O timbre do cantor é muito característico, a sua forma de cantar é singular e a letra não pára em nenhum lugar-comum. Com esta música, Bié dá-nos indícios de estar a construir algo muito seu e que se afasta em tudo da vulgaridade. Resta-nos esperar por mais.




Sara Madeira Cal

Julho 2022



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