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Ano Novo, Vida Nova

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Fotografia retirada da página da CCA (https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-manel-cruz-isto-nao-pode-ser-um-negocio-de-ou-somos-criancas-ou-somos-adultos/)


O álbum que mais ouvi em 2022 foi Vida Nova, de Manel Cruz. Apesar de em 2019, ano em que este disco foi lançado, Manel Cruz já ser uma figura amplamente reconhecida, em particular na sequência do seu trabalho nos Ornatos Violeta, só descobri o álbum de Manel Cruz em nome próprio a meio de 2022 e, a partir dessa altura, começou a ser uma companhia quase diária, a par de outros projetos deste músico.


No seu percurso pelo mundo da música, Manel Cruz criou e fez parte de inúmeras bandas, tais como Ornatos Violeta, Pluto, SuperNada, Foge Foge Bandido, Estação de Serviço e Extensão de Serviço, pôs fim a todas e, mais tarde, regressou a alguns destes projetos. Como explica numa entrevista[1], o músico foi sentindo a necessidade de ter um “espacinho em casa”, de modo a dar vazão a todas as coisas que queria fazer, encarando a variedade e brevidade de alguns dos seus projetos como resultado do exercício da sua liberdade artística: “(…) na questão da arte, eu sempre procurei ao máximo possível sentir-me o mais livre, porque livre nunca somos”.


Manel Cruz relata que houve um hiato na sua atividade enquanto compositor e que, no momento do regressar, se sentia desabituado e desinspirado, parecia que se tinha esquecido como se compunha. Durante 4 meses, o músico trabalhou, em horário da função pública, na composição de novas canções[2]. Manel Cruz explica que o processo de criação deste álbum foi, nesse sentido, convencional e reconhece que “esse prazo [de 4 meses] e esse tempo eram uma necessidade. Não só financeira, mas também de encontrar uma rotina profissional e criativa em que me sentisse confortável. (…) É aquela ideia da liberdade estar confinada, mas seres mais livre do que quando tens o tempo todo para fazer tudo[3].


As canções foram compostas com ukelele e voz. Só depois foram sendo “vestidas” com melodias do teclado e do violoncelo, com percussão e baixo, xilofone, sopros, entre outros instrumentos. Em comparação com trabalhos anteriores, a intensidade da instrumentação é mais reduzida, embora meticulosa e perfeitamente calculada. A par com esta escolha artística, a voz não aparece, nas palavras do próprio músico, “maquilhada” nem “escondida”[4]. Numa entrevista à Comunidade Cultura e Arte[5], Manel Cruz explica que “[Vida Nova] era uma procura a muitos níveis — e também a esse [nível] de pôr a minha voz ali, desprotegida, fragilizada, tentando evidentemente encontrar beleza nisso”. Efetivamente, neste disco, Manel Cruz procurou beleza na debilidade e também na singeleza, tal como explica à Timeout[6]: “Tentei que as ideias mais simples se afirmassem e sobrevivessem no tempo. Numa época em que há coisas incríveis a acontecer, e muitas delas revolucionárias, sobretudo na experimentação tecnológica, começou a atrair-me a ideia de fazer um disco de canções simples”.


Vida Nova não deixa de ser um título enigmático e Manel Cruz oferece-nos várias leituras sobre o mesmo. Por um lado, Vida Nova é uma “declaração de intenções”[1]: se alguém tinha dúvidas, Manel Cruz mostra que está, talvez mais do que nunca, presente no panorama da música alternativa em Portugal e que nele ocupa um lugar muito especial. O artista reflete:Foi muito importante conseguir sentir que ainda estou aqui. Que tenho coisas para dizer, coisas para dar, e vontade de brincar, acima de tudo”[7]. Por outro lado, este álbum surge num momento em que o músico, com 44 anos, constata que é possível que tenha “mais vida para trás do que para a frentee, assim, num momento em que Manel Cruz diz fazer um balanço sobre o que quer para a segunda metade da sua vida. Para o artista, Vida Nova é, assim, um “constatar que estamos sempre a recomeçar”, acompanhado de uma certa esperança de mudança, que acaba por ser frustrada, pelo que “nesse sentido, a Vida Nova pode ser a Vida Antiga. (…) A partir de agora vai ser mesmo como foi … e isso é novo”[1]. Ao longo das várias faixas que compõem o álbum, vão surgindo inúmeras referências a “uma outra vida” ou “um outro tempo” e à necessidade do músico se reinventar: quando, por exemplo, na primeira faixa, “Como um Bom Filho do Vento”, que foi também a primeira canção a ser composta, Manel Cruz anuncia que anda “à procura de um túnel no tempo”; ou na última faixa, uma música leve e com alguns apontamentos jazzísticos do piano, que se intitula “Vida Nova”.


Este álbum não se cinge a esta temática e toca, de forma mais ou menos evidente, em vários temas, apresentado reflexões ou comentários sobre, por exemplo, parentalidade, na faixa “Anjo Incrível”, ou sobre religião, na música “Cães e Ossos”, uma canção bem-disposta e cheia de provocações e aparentes contradições, que se inicia com um icónico diálogo entre Agostinho da Silva e um entrevistador.


Manel Cruz considera que Vida Nova tem "mais a ver com a paz do que propriamente sentimentos épicos de felicidade e ambição"[3]. Este álbum, lançado pela editora independente Turbina, é composto por 12 faixas e, neste pequeno texto, destaco as minhas quatro preferidas. “Ainda Não Acabei”, um dos singles do disco, é irresistível. Esta canção conta a história de alguém que viveu “sempre em guerra”, que está “perdido na mata” e que é “feito de perda”. A letra é uma mistura entre uma declaração de guerra e um desabafo a um tu desconhecido, a quem são dirigidas palavras de ódio, palavras de ressentimento e de desafio. Imaginamos uma personagem, até conhecemos alguém assim, na verdade nós já fomos esse alguém nalgum momento das nossas vidas. Durante cerca de dois minutos, palavras saem disparadas da boca de Manel Cruz, algumas quase cuspidas. Há um ritmo frenético, os acordes são curtos e incisivos, e o acompanhamento das teclas, da percussão e do baixo é verdadeiramente genial. No contexto de uma música como esta, onde ouvimos um discurso irreverente e impulsivo, as seguintes palavras de Manel Cruz fazem particular sentido: “A arte é um espaço para a violência, (…) para chocar, para provocar, para mexer com as cabeças, com as mentalidades”[5].


“O Navio Dela” é talvez a canção de amor mais feminista que algum homem já compôs e claro que tinha de ser escrita por Manel Cruz. A música começa com o refrão e Manel Cruz diz ao que vem, apresentando-nos e descrevendo a “sua mulher”, enquanto canta uma melodia hipnotizante. No primeiro minuto e meio, Manel, acompanhado pelo som da guitarra, canta-nos uma história linda, da qual não queremos perder nem uma palavra. Entramos numa espécie de mundo mágico, com pássaros “fantásticos, agnósticos, simpáticos”, estrelas com cabelos e fantasmas que se transformam em brinquedos.


Esta música é uma ode à independência feminina e não deixa de ser refrescante ouvir um homem a cantar “a minha mulher não é minha”, “[a minha mulher] não precisa de mim” e “[a minha mulher] é o capitão do seu navio”.  Esta música fala-nos de uma relação saudável entre um casal, em que, nas palavras de Manel Cruz, “ambas as pessoas têm os seus próprios interesses e não dependem uma da outra”[1].


Há duas outras músicas que recomendo particularmente: “Beija-Flor” e “Onde Estou Eu”. São músicas que quanto mais ouvimos mais gostamos delas: destilamos os detalhes, reparamos nas hesitações e pausas, arrepiamo-nos com as harmonias de uma beleza etérea e tentamos decifrar o código e entender o que nos dizem as palavras.


Resta-me reforçar a recomendação da audição deste álbum, que marcou o meu 2022, assim como dos outros projetos musicais de Manel Cruz, um músico fascinante, e desejar boas entradas a todos/as os/as leitores/as do Ruído-Mudo!



Sara Cal



[1] https://www.youtube.com/watch?v=znRYOrNA6MY

[2] https://www.publico.pt/2019/03/29/culturaipsilon/noticia/manel-cruz-nao-acabou-1866840

[3] https://24.sapo.pt/vida/artigos/manel-cruz-a-vida-nova-nao-e-uma-vida-feita-e-uma-vida-por-fazer

[4] https://expresso.pt/cultura/2019-05-01-Manel-ainda-quer-brincar

[5] https://www.youtube.com/watch?v=MEJJzBx8DzI&t=559s

[6] https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/manel-cruz-nao-consigo-ler-livros-nao-gosto

[7] https://www.dn.pt/lusa/entrevista-manel-cruz-quis-reencontrar-o-fulgor-da-composicao-e-descobriu-uma-vida-nova-em-album--10729878.html







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