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Ana Lua Caiano e a dança que não queremos adiar

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Ouvi pela primeira vez a música de Ana Lua Caiano num dos episódios das SDB Sessions, onde a cantora e compositora interpretou três músicas da sua autoria. Se senti, numa primeira audição, uma certa estranheza ao ouvir a invulgar proposta musical de Ana Lua Caiano - a fusão de dois estilos tão distintos como a música tradicional portuguesa e música eletrónica -, numa segunda audição já me parecia inegável a beleza dessa estranheza e o espanto inicial deu lugar a uma curiosidade quase hipnótica. A música de Ana Lua Caiano tem algo de magnético. E esperei ansiosamente por novos lançamentos.


Ana Lua Caiano é uma cantora, compositora e produtora portuguesa de 23 anos. Começou a aprender piano aos 6 anos e, mais tarde, estudou jazz no Hot Clube de Portugal. Nos últimos anos, participou em vários projetos musicais, nomeadamente Rua em Quarentena e Os Vertigem, tendo também composto música para cinema. No início de 2020, a cantora e compositora não tinha planos de começar uma carreira a solo, mas a pandemia veio criar condições favoráveis a que Ana Lua Caiano começasse a escrever as primeiras canções que viriam a integrar e a dar forma ao seu novo projeto. Pelas suas palavras, “Com a pandemia tive muito mais tempo sozinha, muito mais tempo para começar a fazer os meus arranjos, a explorar… Tornou-se, assim, o meu refúgio”[1].


Em setembro de 2022, Ana Lua Caiano lançou o seu primeiro EP, a que deu o nome Cheguei Tarde a Ontem, e, menos de um ano depois, em maio de 2023, editou o EP Se Dançar é Só Depois. Em ambos os trabalhos, a artista recorre a sintetizadores, a vários instrumentos de percussão, nomeadamente ao bombo, e, claro, à própria voz, e vemos os frutos de um casamento improvável, mas muito feliz, entre a música tradicional portuguesa e a música eletrónica. Apesar de haver uma estética comum aos dois EPs, há algumas diferenças ao nível da produção e da composição: no seu segundo EP, Ana Lua parece enveredar por um percurso mais experimental e, em algumas músicas, distancia-se da estrutura de uma canção pop convencional. Segundo a artista, Cheguei Tarde a Ontem e Se Dançar é Só Depois são “trabalhos irmãos”[2], “uma espécie de continuação” [3].


Se Dançar é Só Depois, o seu mais recente EP, é composto por 6 faixas, em que Ana Lua Caiano discorre, utilizando uma linguagem metafórica, sobre o problema da habitação, o cansaço e a falta de tempo e sobre as coisas que passam por nós e nos arrastam com elas. A compositora revela, sobre as letras das suas músicas, ao jornal SOL [2], que “Há muitas coisas que escrevo que não são, necessariamente, autobiográficas. Muitas vezes também sou inspirada por conversas que ouço entre a minha família ou amigos”. Na faixa que dá nome ao EP, ouvimos um relato acutilante na primeira pessoa de uma vida que é consumida pelo trabalho e de alguém que se encontra à beira da exaustão. De dia, nunca tem “tempo p'ra dançar” e, de noite, dorme “com os pés no chão p’ra ser mais fácil levantar”, repetindo que os “Nossos corpos já só sabem maquinar”.


Normalmente, não são músicas alegres. São músicas afirmativas, que revelam inquietação e um certo sentido de urgência e, por vezes, indignação. Ana Lua Caiano queixa-se em “Dói-me a Cabeça e o Juízo”, uma música dançável e ritmada, revolta-se em “Casa Abandonada”, oferece resistência em “Mão na Mão” e pinta um clima de festa em “Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou”, como que em contradição com a letra da canção.


A música desta multi-instrumentista é caracterizada por arranjos criativos, por uma percussão sempre muito presente, por baixos poderosos e melodias da voz pouco convencionais, conjugando, de forma harmoniosa, elementos da música tradicional e eletrónica. O cruzamento entre estes dois estilos musicais surgiu, na composição de Ana Lua Caiano, de forma “natural”3. Por um lado, a artista destaca a importante influência da obra de cantautores portugueses como Zeca Afonso, Fausto e Zé Mário Branco [4], que, por sua vez, foram beber à música tradicional portuguesa, como refere numa entrevista ao jornal Sol [2]: “Eu tive este contacto [com a música tradicional portuguesa] desde muito cedo e foi algo que sempre ficou comigo. Quando comecei a compor sinto que já tinha uma forte influência da música tradicional.”


Por outro lado, mais recentemente, Ana Lua começou a interessar-se em explorar as potencialidades dos sintetizadores, assim como por géneros musicais mais experimentais, nomeadamente pela música concreta. Uma particularidade da música de Ana Lua Caiano prende-se com a multiplicidade de texturas musicais que a artista incorpora nos seus trabalhos. Esta riqueza textural deve-se, em parte, à inclusão de outro tipo de sons produzidos por objetos que utilizamos no nosso quotidiano.  Ao longo do EP, ouvimos vários sons que nos são familiares e que dão muita cor à música:  o som do manuseamento de objetos correntes, o de um frigorífico, que na faixa “Vou abaixo, volto acima” cumpre a função de baixo, e até o som da própria respiração que imprime ritmo às canções. Como explica numa entrevista à Antena 1: “Eu gosto muito de pensar em tudo como potência de ser um instrumento musical. Tanto uma garrafa de água como um carinho de brincar de uma criança têm um som muito particular que é como se fosse um instrumento. Se fizermos dele um instrumento, ele é um instrumento”[5].


Resta-me recomendar, para além da audição deste EP, a visualização dos videoclipes, realizados por Joana Caiano, que acompanham as canções “Mão na Mão” e “Se Dançar é Só Depois”, cuja estética se alinha na perfeição com a música de Ana Lua, complementando de maneira irrepreensível as imagens que as palavras, sons e notas nos sugerem. No último ano, Ana Lua Caiano tem feito concertos por todo o país, tendo passado por inúmeros palcos, desde o Musicbox, Galeria Zé dos Bois e Maus Hábitos, até aos festivais WOMEX e Imaterial. Recorrendo a uma loop station, a cantora e multi-instrumentista desafia-se e sobe ao palco sozinha, encarregando-se das teclas, da percussão e da voz. Vai continuar a tocar pelo país fora e aconselho vivamente que marquem presença num dos seus vibrantes concertos.




Sara Madeira Cal




[1] https://sdbsessions.com/ [2] https://sol.sapo.pt/artigo/799502/ana-lua-caiano-a-nova-tradicao-portuguesa [3] https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-ana-lua-caiano-acho-que-e-giro-a-tradicao-ir-evoluindo-e-nao-e-um-desrespeito-pela-musica/ [4] https://sol.sapo.pt/artigo/799502/ana-lua-caiano-a-nova-tradicao-portuguesa [5] https://antena1.rtp.pt/video/as-novas-inquietacoes-de-ana-lua-caiano/



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