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A trágica jornada da Docemania

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“Vamos acordar e ficar a ouvir, a rádio no ar, a chuva a cair (...)”, é impossível ouvir ou (neste caso) ler estas palavras e não cantar de volta o “Amanhã de Manhã” das eternas Doce. Não querendo reduzir uma das primeiras girlbands portuguesas a uma mera comparação com outros exemplos mais famosos estrangeiros, de facto, as Doce acabaram por ser conhecidas como as Spice Girls portuguesas — algo que me ofende profundamente, sendo as Doce de 1980 e a girlband britânica de 1994 — ou como uma espécie de ABBA “feminino”, devido ao estilo excêntrico que ambos os grupos partilham e à natureza cativante das suas melodias e letras.


Contudo, as Doce são as Doce, e qualquer comparação a outro grupo estrangeiro não lhes faz justiça, especialmente tendo em conta que tiveram sucesso em Portugal nos anos 80, uma época extremamente conservadora, na qual a banda foi muito julgada pelo público, e, principalmente, por críticos musicais que as reduziam ao seu sex appeal (provavelmente por serem um grupo de mulheres, não é?).


Mas como começaram as Doce? Esta questão surgiu-me depois de ouvir falar sobre o filme (e minissérie) das Doce: “Bem Bom”, que despertou a minha curiosidade sobre a origem do grupo e me levou a ver a minissérie (“Doce”) e a procurar o máximo de informação sobre como começou tudo. E parece que tudo se deve a Tozé Brito, cantor, letrista e lendário compositor português. Tozé Brito fazia parte da banda Gemini, juntamente com duas das integrantes das Doce, Teresa Miguel e Fátima Padinha, com a qual recebeu o primeiro Disco de Ouro entregue em Portugal, para o álbum “Pensando em Ti”. Brito acabou por escolher desistir da banda e integrar um cargo de A&R — termo cool da indústria para “Artistas e Reportório” — da Polygram, a editora discográfica que iria representar as Doce pouco tempo depois. O compositor “levou”, então, Teresa Miguel e Fátima Padinha consigo e reuniu mais duas cantoras — Lena Coelho (parte da banda Cocktail anteriormente, a real primeira girlband portuguesa), e Laura Diogo (escolhida para integrar o grupo, em parte, pela sua beleza “loira”) — para criar o quarteto.


Assim, nasceram as Doce, que se popularizaram do dia para a noite com “Amanhã de Manhã” — que ficou gravado nas cabeças dos portugueses, que ouviram e ouviram e compraram o disco das Doce, até este se tornar um Disco de Ouro — surgindo, desta forma, o fenómeno Docemania.


“Amanhã de Manhã” foi só o início da história das Doce, que concorreram quatro vezes no Festival da Canção, sofrendo várias perdas pela “controvérsia” criada pelos fatos que usavam, demasiado ousados para o júri conservador do Festival da Canção. As canções das Doce, compostas quase na sua totalidade por Tozé Brito, destacavam-se pela simplicidade das suas melodias, visto que Brito se encontrava saturado da música de intervenção e procurava um som mais “popular”, que alegrasse as pessoas nos anos pós 25 de abril, fazendo-o também com o uso de letras com alusões sexuais, algo que, associado à ousadia do seu doce guarda-roupa, tornou a fama da banda polémica. Esta procura do compositor por um som “alegre” gerou também muitas críticas entre a comunidade musical, tornando as quatro integrantes vulneráveis.


Entretanto, no meio de tanto sucesso começa o “início do fim”, com o designado (pelos jornais) “escândalo sexual”, que foi uma falta de justiça para todas as partes envolvidas. Em dezembro de 1981, deu entrada nas urgências do Hospital de Santa Maria uma pessoa que afirmava ser a Laura Diogo. A pessoa disse ter sido violentamente sodomizada por um jovem. A partir desta história criou-se um boato que Laura Diogo tinha sido atacada por Reinaldo Gomes, um jogador do Benfica que foi confundido por parecença ao jovem que terá cometido o crime. Na verdade, a pessoa que foi violada era um travesti que se vestia como Laura Diogo, por admiração à cantora, algo que parece só ter sido esclarecido recentemente. Esta situação acabou por ter um desfecho terrível com o jovem Reinaldo Gomes acabando a sair do clube e Laura Diogo sendo muito julgada. Na altura, esta história foi extremamente popularizada pelos media, que exacerbaram a gravidade da situação ao espalhar uma história falsa — falhando redondamente na sua falta de apoio a uma vítima de uma violação. Mesmo não sendo Laura Diogo a verdadeira vítima, o comportamento do público e dos jornais (do próprio Hospital também, que começou o boato) para com ela foi deplorável, tratando o caso como um escândalo ao invés do ataque que tinha sido.


Este desfecho foi uma enorme injustiça, com um jovem inocente a ser acusado (a meu ver, uma situação clara de racismo devido à origem guineense do atleta), com uma jovem estrela a ser mal vista, apesar de ter sido a suposta vítima de uma violação, e, a pior parte, a própria vítima deste ataque violento, mascarado como uma mera polémica de uma “celebridade”.


Este caso transporta-nos para a mentalidade da altura, que não estava pronta para uma banda feminina tão poderosa, e, que se aproveitou de uma situação tão delicada e feia para começar uma “campanha” contra as Doce.


No fim, a carreira das Doce começou a deteriorar-se, em grande parte, por causa deste “escândalo”, algo visível pela queda das vendas dos discos da banda.


Para demonstrar que as Doce não poderiam terminar, as integrantes tentaram “internacionalizar-se”, começando a cantar em inglês, algo que, não ajudou muito com a queda das vendas, e, para Tozé Brito, foi o real responsável do fim da banda.


Desta maneira, uma das primeiras bandas femininas portuguesas, que muito fizeram pelas mulheres na música, terminaram devido à agenda sexista do público e dos media (esta conclusão como um produto da minha análise pessoal), que, infelizmente, não estavam preparados para a maravilhosa Docemania. Um desfecho trágico, que nos privou de ouvir mais êxitos.




Marta Tavares



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