Saturday Night in San Francisco: a noite que o tempo esqueceu
Estávamos em 1980, mais precisamente a 5 de Dezembro, quando Al Di Meola, John McLaughlin e Paco de Lucia subiram ao palco do Warfield Theater, em São Francisco, para apresentar, numa sexta-feira à noite, um espetáculo que tinha como protagonista a guitarra acústica. A finalizar uma tour que durava há cerca de dois meses, este parecia ser apenas mais um concerto onde os três músicos apresentariam, com toda a mestria e virtuosismo, a sua linguagem de fusão, caracterizada por uma combinação entre flamenco e jazz. Contudo, Al Di Meola, John McLaughlin e Paco de Lucia sentiram que estavam perante algo muito especial e que deviam arranjar uma forma de preservar toda a energia, destreza técnica e intermusicalidade que vinham a ser experienciadas nas suas atuações. Desta forma, decidiram então editar a gravação do concerto de sexta-feira, 5 de Dezembro, no Warfield Theater, em São Francisco, perante uma plateia de 2300 espectadores. “Carregada de intenção e energia” são as palavras utilizadas por Al Di Meola para descrever a noite que viria a ficar imortalizada no célebre álbum Friday Night in San Francisco (FNISF).
FNISF, editado em 1981 pela Columbia Records, acabaria por se tornar uma referência no cânone da música de fusão e tem vindo a ser prezado por muitos, como é o caso do crítico de jazz Walter Kolosky, que descreveu o concerto de 5 de Dezembro como “uma ocasião histórica”. Segundo Kolosky, “A atuação de John McLaughlin, Al Di Meola, e Paco de Lucia no Warfield Theater de São Francisco numa noite de sexta-feira em 1980 foi um evento musical que pode ser comparado à performance da Benny Gooman Band no Carnegie Hall em 1938. O Trio de Guitarras fez pela guitarra acústica o que Goodman tinha feito pelo jazz. A guitarra acústica tornou-se comercial.” Ao revelar-se um sucesso, FNISF conseguiu alcançar as notáveis 97.ª e 6.ª posições na primeira metade da tabela Billboard 200 e na Billboard Top Jazz Albuns, respetivamente, e superou a marca de sete milhões de cópias vendidas. Descrito também por Kolosky como “o mais influente de todos os álbuns ao vivo de guitarra acústica.”, FNISF representa, assim, um marco na discografia dos três guitarristas.
Passados mais de quarenta anos ainda eram muitos os fãs que, apesar de possuírem na sua coleção FNISF, desconheciam a existência de um segundo concerto que o trio tinha dado no dia seguinte, sábado, dia 6 de Dezembro, na mesma sala, e que também tinha sido gravado. Aliás, o desvendar deste “segredo” surgiu como uma “inesperada” celebração do 40.º, ou melhor 41.º, aniversário do álbum de 1981. Porém, Al Di Meola não tinha intenções de relançar o álbum numa versão remasterizada ou com as restantes faixas do concerto; o músico preferiu dar aos fãs algo de novo, mas que ao mesmo tempo remetesse simbolicamente para a celebração daquele concerto emblemático. Desta forma, o resultado passou então por editar um novo álbum com as faixas do concerto de sábado, 6 de Dezembro, e ao qual decidiu dar, naturalmente, o título de Saturday Night in San Francisco (SNISF).
Segundo Al Di Meola, “Durante quarenta anos, eu guardei a outra noite que ninguém conhecia, exceto as pessoas que estiveram presentes no concerto. (…) Mas eu tenho as fitas, e restaurei-as profissionalmente. Estão fenomenais!” Esquecidas desde 1980, as fitas viriam a ser encontradas na cave da casa de Al, em New Jersey, juntamente com outras multipistas e masters de gravações de concertos. Naturalmente danificadas pela síndrome sticky shed, causada pela deterioração da liga que segura a camada de óxido de ferro magnetizável ao suporte de plástico, Al recuperou as fitas através do processo de baking, que consiste em colocar a fita magnética a altas temperaturas com o intuito de remover a humidade acumulada na liga. Este processo permite recuperar temporariamente a informação magnética contida na camada de óxido de ferro, antes de esta reabsorver a humidade.
Ao selecionar as faixas presentes em SNISF, Al teve o cuidado de escolher várias faixas que não constam em FNISF, esclarecendo que “durante as duas noites, nós tocámos toda a música que tínhamos planeado. Por outras palavras, se fossem ouvir o Friday Night e o Saturday Night seguidos, ouviriam o concerto completo, em termos da quantidade de música que tocámos. Nós apenas utilizámos a música do Saturday Night, encontrámos outras faixas que não entraram no Friday Night e editámo-las.“. Para aqueles que pensam que SNISF é composto apenas por b-sides de FNISF, Al reitera que “o Saturday Night é tão bom como o Friday Night. São apenas diferentes. São peças diferentes. Com diferentes configurações. No Friday Night existe apenas uma peça em trio. O resto são duetos. No Saturday Night, existem quatro peças em trio. Existem também três secções solísticas separadas. O Paco de Lucia faz um solo, o John McLaughlin faz um solo e eu faço um solo.” Ao todo são sete faixas na versão em LP e oito na versão CD, onde mais uma vez Al Di Meola, John McLaughlin e Paco de Lucia demonstram toda a sua proficiência técnica perante o delírio de uma plateia galvanizada.
Quanto à estrutura do álbum, SNISF tem início com uma breve introdução de Bill Graham, o mítico promotor por detrás do concerto. De seguida, o trio parte para “Splendido Sundance”, uma composição de Al Di Meola que resulta numa espécie de sequela para a clássica “Mediterranean Sundance”, presente em FNISF. Seguem-se os momentos a solo, primeiro com John McLaughlin em “New World”, posteriormente com Al Di Meola em “Trilogy Suite” e a finalizar com Paco de Lucia em “Monasterio de Sal”. O registo prossegue com o regresso ao formato de trio, primeiro através de uma buleria composta por Paco intitulada “El Pañuelo”, seguindo-se “Meeting of the Spirits”, uma composição da Mahavishnu Orchestra, o grupo de jazz fusion criado por McLaughlin, em 1971. A finalizar o álbum encontramos “Orpheo Negro”, uma peça com toques de bossa nova do guitarrista brasileiro Luiz Bonfá.
Será ainda cedo para apelidar SNISF de emblemático? Porque não?
Todos os discos emblemáticos têm uma história por detrás que os torna ainda mais especiais. Saturday Night in San Francisco não é exceção. A sua envoltura num esquecimento de quarenta anos bem como o encobrimento por parte do seu “irmão mais velho” Friday Night In San Francisco fizeram com que este registo se tornasse ainda mais icónico. Para todos os amantes do virtuosismo e da guitarra acústica, este é, sem dúvida, um momento de celebração.
Rodrigo Baptista
Fontes:
PARKER, Matt (29 de Abril de 2022). A sequel to Al Di Meola, John McLaughlin and Paco De Lucia’s legendary live album Friday Night In San Francisco is on the way
Disponível em: https://www.guitarworld.com/news/al-di-meola-john-mclaughlin-paco-de-lucia-saturday-night-in-san-francisco
MARCHESE, Joe (7 de Julho de 2022). Meeting of the Spirits: Impex Premieres Al Di Meola, John McLaughlin, and Paco de Lucia's "Saturday Night in San Francisco"
MEYERS, Marc (11 de Julho de 2022). Interview: Al Di Meola on 'Saturday Night in SF'
Disponível em: https://www.jazzwax.com/2022/07/interview-al-di-meola-on-saturday-night-in-sf.html
MEAD, Dave (1 de Setembro de 2022) Al Di Meola on how a legendary live session with Paco de Lucía and John McLaughlin came to light after 40 years
Disponível em: https://www.guitarworld.com/features/al-di-meola-saturday-night-in-san-francisco