Carrie and Lowell – tristezas, raivas, niilismos, aceitação, joie de vivre
Dizer que Carrie and Lowell, álbum seminal do cantautor Sufjan Stevens lançado em 2015 pela Asthmatic Kitty Records, se trata de um álbum “triste” é não menos que um ridículo eufemismo. É melancolia em forma musical, um “heartbreak” de 43 minutos e 43 segundos, uma coleção de canções produzidas de forma igualmente exímia e elegante, um verdadeiro curso rápido na arte de escrever canções e de como apresentá-las a uma audiência que se identificará imensamente com elas.
Carrie and Lowell é um álbum concetual que fala sobre a relação de Sufjan com a sua mãe, desde a infância do cantor até à morte de Carrie, em 2012, devido a um cancro no estômago. Trata-se de um processo evidentemente catártico para Stevens, o que não deixa de trespassar através da música: Carrie, que sofria de depressão, esquizofrenia e abuso de substâncias, abandonou-o quando ele tinha um ano. A escrita e gravação deste trabalho discográfico apresentaram-se a Sufjan como uma oportunidade de não só fazer o luto, como também de aprender a conviver em paz com a relação que tinha com a mãe, perdoando-a pelas suas falhas e pondo em prática um difícil – se bem que certamente importante e terapêutico – processo de aceitação. Se é descrito o modo como Sufjan, ao início, não terá sabido lidar de modo saudável com a morte da mãe (pensamentos suicidas, dependências diversas, tendências depressivas), é também evidenciado o modo como este álbum, estas canções altamente íntimas e pessoais, o terão “salvado” dessa fase difícil.
Ao longo de Carrie and Lowell aprendemos que, após o abandono descrito acima, Carrie terá voltado a entrar na vida de Sufjan ainda durante a sua infância. São descritas viagens em família ao Oregon e a brisa que lhe batia no cabelo em criança, uma situação de abandono numa loja de DVDs e filmes, traços de uma relação fisicamente abusiva, iogurtes de limão e o modo como Sufjan, em criança, puxava a camisola da mãe e atirava ao chão os seus cinzeiros numa tentativa desesperada de conseguir a sua atenção, aulas de natação com um professor (potencialmente Lowell, o seu padrasto) que não sabia dizer o seu nome (e que, consequentemente, lhe chamava “subaru”), entre outros episódios, uns mais felizes e ternos que outros, mas todos, de algum modo, marcantes.
É ainda evidente o modo como Sufjan deseja que Carrie tivesse estado mais presente ao longo da sua vida, reconhecendo, portanto, a existência e necessidade do amor maternal, mesmo tendo em conta a relação conturbada entre os dois. Sufjan deseja estar ao pé dela, com ela, de certo modo recuperando o tempo perdido. É também referida repetidamente uma sobrinha do cantor, que aqui personifica uma luz (“illumination” – no tema ‘Should Have Known Better’) no meio de um processo de luto escurecido. As letras estão repletas de referências a diversas mitologias (grega, árabe), assemelhando-se mais a um texto poético-literário do que à letra de uma canção, para todos os efeitos, pop, propriamente dita.
‘Fourth of July’, a sexta faixa do álbum, é, para mim, a melhor canção desta coleção, assim como uma das minhas canções preferidas de todos os tempos. É também, sem qualquer dúvida, uma das (senão a) que produz em mim uma maior e mais poderosa resposta emocional. A produção, como no resto do álbum, é incrivelmente minimalista: Sufjan usa os timbres certos nos momentos certos, e é absolutamente espantoso o uso que o cantautor faz de pads, guitarras, banjos, sintetizadores, pianos e, claro, da sua própria voz. À semelhança de Billie Eilish, a voz de Sufjan chega a nós num melodioso suspiro que resulta numa imediata conexão intimista com o ouvinte. Não há esforços vocais, mostras inusitadas de virtuosismos nem de técnica vocal e instrumental, mas apenas o absolutamente necessário para aquela canção em particular. A produção, na sua maioria low-fy, mas também pop-folk, é, então, crua e minimalista, mas brilhantemente elaborada e riquíssima, apesar de ter tão poucos elementos, acabando por colocar o foco na canção e no conteúdo literário cantado. É essa, no fundo, a (ou uma das) magia(s) de Carrie and Lowell: as canções são lindíssimas e, ao mesmo tempo, discretas, subtis, não soando propriamente “negras” por si só; contudo, se nos deixarmos envolver pela música e, de igual modo, pelas letras, é-nos presenteado um bilhete garantido para uma reflexão profunda, uma experiência emocional verdadeiramente única, potente e rica.
Em ‘Fourth of July’, dizia eu, Sufjan fala-nos sobre os seus últimos momentos passados com Carrie, no hospital, pouco antes da morte da mãe. Se os versos são cantados na perspetiva de um filho que vê a mãe morrer, os refrões incidem sobre a perspetiva de Carrie, que, no seu leito de morte, não deixa de falar com Sufjan como uma mãe sempre falará com o seu filho, tranquilizando-o e tentando não o deixar triste, pondo-se em segundo plano apesar de todo e qualquer passado negativo entre os dois. Sufjan prepara-se para perder a mãe, tentando fazer sentido do que está para acontecer, e Carrie responde: entre “Did you get enough love, my little dove? / Why do you cry? / And I'm sorry I left, but it was for the best / Though it never felt right. / My little Versailles”, “Shall we look at the moon?” e outros versos incrivelmente bonitos que trazem ao de cima todas as memórias de infância que possamos ter do amor materno incondicional, uma das melhores e mais puras sensações que podemos ter a sorte de experienciar, vem o fatídico “We’re all gonna die”, repetido quase dez vezes ao longo da música, qual mantra niilista com o qual custa lidar.
A viagem emocional pela qual Carrie and Lowell nos transporta divide-se por várias fases, fases essas que o tornam num álbum não adequado para uma escuta passiva e desatenta: se, ao início, começamos por nos sentir nostálgicos e melancólicos, presos na nossa própria cabeça e nos nossos sentimentos, quase a querer entrar um estado melancólico que é, de certo modo, quando passageiro, confortável e meditativo, rapidamente esse sentimento dá lugar à raiva. Para além de uma profunda tristeza, sinto muita raiva quando ouço este álbum. Não só pelo tempo que perdi com as pessoas que me eram próximas e que, de uma maneira ou de outra, me abandonaram, mas pelo tempo que perdi comigo mesmo – se a vida é curta (e é), como perder tempo a não sermos a melhor versão de nós próprios? Como não darmos 100% de nós e vivermos a vida ao máximo? De seguida, regressa aquele sentimento de profunda tristeza, mas desta vez sem elementos de revolta à mistura, mas antes acompanhado pelo inevitável conforto da aceitação. Neste ponto, caímos num estado niilista em que nada mais importa porque, citando novamente Sufjan em ‘Fourth of July’, “We´re all gonna die”. Tal não significa, a meu ver, que devamos desistir e esperar que essa eventual parte da vida chegue, mas antes que a vida é de facto curta, pelo que a devemos aproveitar ao máximo. É, para mim, uma incrível e poderosa mensagem de esperança, que me faz sentir tão humano quanto invencível. Há uma paz interior que se apresenta ao ser humano quando aceitamos o conceito da nossa própria morte e deixamos de, para ela, tentar encontrar um qualquer sentido.
E que outro meio senão a Arte – e, em particular, a música – poderia ajudar-nos a concretizar essa impossível tarefa?
Guilherme Santos