Batsaykhan e o vórtex da Favela Discos
Batsaykhan é o projeto de Nuno Oliveira que marca, em 2013, o início da Favela Discos. O EP miestro ir noras, lançado sob o nome Batsaykhantuul, é o primeiro projeto a ser apresentado pelo coletivo de artistas que, ao longo dos últimos quase 10 anos, tem vindo a explorar uma faceta experimental, eletrónica e de improvisação da música portuguesa. Ao começar a ouvir Batsaykhan, rapidamente me vi a mergulhar num rabbit hole da Favela e perdi-me no meio dos tão diversos projetos e personagens bizarras com que me fui deparando. Felizmente, não faltam conteúdos de todo o tipo de formatos da editora, fornecidos pela mesma, como é o caso dos vídeos de concertos de Inês Castanheira ou o próprio Tumblr da Favela, “Urban Spam Department”.
O coletivo, que surge no prédio onde viviam Tito Frito, David Olé e João Sarnadas (Coelho Radioactivo), tem um importante papel na organização de eventos únicos na cidade do Porto, com uma curadoria que valoriza a colaboração entre artistas, fator esse que poderá justificar o vasto leque de projetos dos vários membros da Favela. Uma grande parte destes eventos decorrem no Café Au Lait, um bar portuense localizado nas Galerias, ao qual a editora se juntou para uma residência artística decorrente até hoje: as noites Favela Au Lait.
De volta a 2022, o músico e artista visual bracarense Nuno Oliveira, que pode ser visto noutros projetos como Judas Triste (que editaram o excelente Antropomância no ano de 2021), dá uma nova vida a Batsaykhan, auxiliado pela formação em trio que introduz André Azevedo e Tito Silva (Tito Frito) ao deserto paradisíaco para o qual estas músicas nos levam. O álbum toma por título o nome da banda e foi lançado em fevereiro deste ano, contando com uma capa deslumbrante feita pela artista Rita Laranja – tendo sido também impressas à mão linogravuras disponíveis para compra numa edição limitada em vinil do disco.
Neste álbum, em relação aos anteriores EP e single, de 2013 e 2014 respetivamente, vemos uma adição de camadas que abandonam a inicial restrição a apenas alguns instrumentos de cordas e percussões, característica principalmente presente em "miestro ir noras" (o single de 2014 já se aproxima mais, em termos sonoros, do longa-duração). Com sintetizadores hipnotizantes, cada faixa cria uma atmosfera que nos faz perder noção do tempo durante os 38 minutos de escuta do disco, tanto que há uns dias dei por mim perdido, a olhar fixamente para a janela enquanto observava nuvens movidas pelo vento, completamente abstraído ao ouvir o single “Midori”, a única música do álbum que veio acompanhada por um videoclipe, de Inês Castanheira. O disco homónimo foi apresentado ao vivo no Porto em fevereiro, na noite Favela Au Lait XXI-IV, depois dos 8 anos de hiato de Batsaykhan.
( https://www.youtube.com/watch?v=r1vMcjZKh34 )
Até agora, música instrumental não era uma categoria comum para eu ouvir no dia a dia. No entanto, ao descobrir este disco, descobri também que o meu gosto tem vindo a mudar, e assim vi as portas para o mundo mágico que é a Favela a abrirem-se.
Já conhecia previamente a editora, até porque gosto muito do trabalho do João Sarnadas como Coelho Radioactivo. Tendo surgido na mesma altura que a Gentle Records, há pessoas e espaços comuns entre os dois coletivos. Num vídeo de uma arruada do Milteto, grupo que une vários membros da Favela, encontramos, por exemplo, Luís Severo e Moxila (Mariana Pita). Já na primeira edição da Favela Discos Au Lait, tocou João Nada (João Sobral), um dos fundadores da Gentle. Apesar disto, só agora mergulhei verdadeiramente na discografia da Favela, e descobri que eram mares ainda mais profundos do que imaginara.
Para lá da música, encontramos um certo aspeto de fantasia nalguns dos projetos da Favela Discos, como é o caso de Batsaykhan, que acaba por tomar a forma de uma personagem ou alter ego de Nuno Oliveira. No canal de Youtube da editora está registada, numa gravação novamente por Inês Castanheira, a performance de Batsaykhantuul nos Maus Hábitos, em 2014. Aqui vemos Quimba Reis, personagem de João Sarnadas, nos teclados, a acompanhar Nuno O., enquanto no chão está um Pepe Marcio seminu, tapado apenas por uma bandeira de Portugal. Dora Vieira, também da Favela Discos, desenha onde está deitado Pepe Marcio ao longo do concerto, até que, no fim, este se levanta e sai da sala sem dizer nada. Mas quem é Pepe Marcio? Claro, mais um alter ego e projeto musical, desta vez de Pedro Tavares e personificado por Tito Frito, com apenas três músicas editadas, em dois lançamentos de abril de 2013: o single “Schmitz”, e “Siga Nada” e “Juanita”, duas músicas juntas em Desert Sounds, a segunda com um vídeo gravado pelas ruas de Bonfim.
Estas performances atípicas e histórias ocultas por trás dos vários elementos fizeram surgir em mim um grande interesse pela editora e levaram-me a procurar mais “lore” sobre outros projetos da mesma, sendo uma das minhas descobertas preferidas o duo francês de música eletrónica Vive les Cônes, que reúne Jean Mocard e Jean Ronde, dois músicos franceses baseados no Porto que se conheceram em 2009 nos arredores de Paris e seguiram numa suposta tour pela Europa e Ásia. Sinto-me obrigado a deixar a veracidade desta história e as possíveis identidades na base do projeto um mistério, para preservar a sua magia.
Depois desta breve apresentação a apenas alguns exemplos do que a Favela Discos nos tem para oferecer, é impossível permanecer indiferente ao que a editora nortenha tem vindo a fazer. Pessoalmente, já nem consigo andar pela baixa do Porto sem olhar para as paredes em busca de posters, autocolantes e graffitis relacionados com a Favela, sendo que até ao andar pelo Intendente, em Lisboa, já encontrei autocolantes “Favela Desentopementes”, semelhantes à publicidade de qualquer canalizador típico português.
Não esquecendo a temática inicial deste artigo, posso afirmar que o regresso de Batsaykhan constituirá para mim um dos melhores discos lançados em Portugal este ano, e que a Favela Discos é dos projetos mais interessantes que encontramos atualmente neste país.
Afonso Mateus