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Circles e 3 anos sem Mac Miller

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Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é a sombra

De árvores alheias.

Ricardo Reis

Segue o teu destino, (fragmento)

No dia 17 de janeiro de 2020, o álbum “Circles”, de Mac Miller, foi lançado postumamente. A produção deste disco foi terminada por Jon Brion, que trabalhara com Miller na produção dos seus dois álbuns anteriores.

Mac Miller havia projetado este álbum como parte integrante de um projeto que incluía também “Swimming”, álbum lançado em agosto de 2018, e considerava ainda a inclusão de um terceiro disco, formando uma trilogia.

Frequentemente, “Circles” é considerado o culminar do processo evolutivo da música de Mac Miller, que, ao longo dos anos, se foi afastando de um percurso dito convencional no mundo do rap. Do meu ponto de vista, este álbum pouco ou nada tem a ver com os trabalhos iniciais de Mac Miller, que o fizeram ganhar fama de “frat rapper”. Apesar de “Swimming” indiciar uma vontade de fazer música diferente do que havia até então feito, dificilmente se poderá dizer que foi um prenúncio de "Circles”, que, em muitos sentidos, rompe completamente com trabalhos anteriores de Miller. Ou seja, apesar de “Swimming” já ser um sinal, dificilmente se poderia prever o que estaria para vir.

Neste álbum, Mac Miller evita o rap, estilo que, anos antes, lhe havia permitido uma rápida ascensão e o seu estabelecimento enquanto artista, e oferece-nos uma voz frágil e, por vezes, quase hesitante. O timbre de Mac Miller e a sua maneira simples e leve de cantar, sem marcas de esforço, oferecem um toque muito humano à música e faz com que todas as suas palavras nos pareçam genuínas. Oscilando entre um tom confessional e um tom afirmativo, neste álbum, Mac Miller fala-nos sobre algumas das suas preocupações e angústias, sobre os seus desejos e também sobre os seus “demónios”, termo utilizado na faixa “Blue World” (“The devil on my doorstep bein' so shady/ Mmm, don't trip, we don't gotta let him in”).

Em “Circles”, Mac Miller faz sucessivas alusões, tácitas ou explícitas, ao consumo de drogas (por exemplo, “Every now and again, baby, I get high” [“Once a Day”]) e às respetivas consequências na sua relação com outras pessoas (“You be complaining / And I can't explain it” [I Can See]). Miller fala-nos também de uma realidade difusa e alguns dos seus versos remetem-nos para experiências quase surrealistas. Na faixa “I Can See”, por exemplo, Mac Miller canta “And all I know if life is but a dream then so are we” e também “Life is a fantasy until you wake up in shock”. As palavras escolhidas em algumas das músicas transmitem uma certa alienação em relação ao mundo e o cantor, por vezes, parece até pouco comprometido e pouco ligado à vida.

Arrependimento é um sentimento latente em várias músicas do álbum: Miller aponta para erros do passado – “A lot of things I regret, but I just say I forget” [“Good News”] ou “I've spent my life livin' with a lot of regrets” [“Hands Down”] – e versos como “Cause you care, and I swear that I'm here, but I'm there” ou “And all I do is say sorry” sugerem que Miller, por vezes, se sentia em falta com outras pessoas. Quando canta “I cannot be changed, trust me I’ve tried” [“Circles”] pressentimos não só a desilusão que provoca nos outros, mas principalmente a desilusão de Mac Miller consigo mesmo, parecendo ter desistido de si... “I made it, but I hate once I build it, I break it” [“Hand Me Downs”] é um verso que sintetiza a relação de Mac Miller com a sua obra e, possivelmente, consigo próprio – uma relação destrutiva, violenta e cansativa.

Este é um disco sobre o passado e sobre o presente, mas no qual vemos Mac Miller a projetar-se no futuro. Referências bastante explícitas à sua morte (“There's a whole lot more for me waitin' on the other side” [“Good News”]; “There's a room somewhere up above the trees/And once you get there, you don't ever wanna leave [Floating]) são perturbadoras e percebemos que, apesar da idade jovem, Miller tinha este tema muito presente. Em “Complications”, deixa escapar: “Well, I'm way too young to be gettin' old”.

Em vários momentos, as letras de Miller espelham o hábito do produtor, compositor e cantor estar absorto nos seus pensamentos, com o objetivo de lhes dar sentido e ordem (“Inside my head is getting pretty cluttered / I try, but can't clean up this mess I made”), o que é consistente com as reflexões que com os ouvintes partilha. Em “Good News”, Mac Miller refere-se a este processo cognitivo com a seguinte metáfora: “I spent the whole day in my head / Do a little spring cleanin'”. Em alguns momentos do álbum, Mac Miller canta sobre as dificuldades que sente e admite, talvez em alturas de desespero, precisar de ajuda – “Well, I need somebody to save me” [I Can See]; “And all I ever needed was somebody with some reason who can keep me sane” [“Hands Me Down”].

Quando escreveu “Circles”, Mac Miller estava deprimido e tinha problemas de toxicodependência. Talvez por isso, em várias faixas deste álbum, Miller parece valorizar, acima de tudo, a ideia de “viver um dia de cada vez”, procurando viver de maneira tranquila e sem “complicações”. Nas suas palavras, em “Complicated”, “Some people say they want to live forever / That's way too long, I'll just get through today / Without any complications”. A voz de Mac Miller, cansada, pinta a vida como um caminho fatigante e custoso e chega a perguntar, em “Good News”, “Why can't it just be easy? (…) Can I get a break?”. A realidade é descrita como acelerada e cansativa: “Well, so tired of bein' so tired” [“Good News”]. Está presente inúmeras vezes neste álbum este desejo da vivência serena, que nos faz pensar em Mac Miller como um ser numa constante busca por uma espécie de ataraxia.

Este álbum tem doze faixas e aconselho em especial as quatro abaixo identificadas, que para mim são verdadeiramente especiais. A primeira faixa é também a que dá nome ao álbum e é um autêntico pedacinho de serenidade. Desde o primeiro segundo de música, estabelece-se um ambiente musical que permanecerá praticamente intacto com o desenrolar da música: não há mudanças de dinâmica, o instrumental é simples e bonito. Ouvimos a voz de Mac Miller, terna e tranquila, fazer referência a círculos, percebemos que há uma lógica por detrás da escolha deste conceito e ficamos a pensar o que Miller nos queria dizer.

Este disco parece oscilar entre uma sonoridade tranquila e melancólica e músicas com vigor, ritmadas e enérgicas. “Blue World”, a segunda faixa, onde predominam sons sintetizados, inclui-se nesta última categoria: Miller debita versos rápidos e o instrumental acompanha-o, tendo a música uma energia contagiante.

Com “Good News”, o primeiro single deste álbum, voltamos ao registo musical da faixa “Circles”. Esta música destaca-se por ter um refrão de uma beleza fora do comum, pela produção cuidada, pela sinceridade da letra e pela maneira despretensiosa de Miller cantar.

Já no final do álbum, a penúltima faixa chamou-me particularmente a atenção. Chama-se “Surf” e é uma das músicas mais otimistas do disco: Mac canta sereno e com esperança no futuro. Começa por cantar apenas acompanhado por uma guitarra, mas a música vai crescendo e intensificando-se de maneira cuidada. É uma bonita canção de amor, delicada, não peca por excesso nem por defeito e é, talvez, a minha preferida de todo o álbum.

Mac Miller morreu no dia 7 de setembro de 2018, com 26 anos, devido a uma overdose acidental. Nessa altura, nunca tinha ouvido nada da sua autoria nem pensava fazê-lo. Na verdade, nunca ouvira um álbum de rap completo. Mas, dois anos mais tarde, “Circles” foi lançado e este álbum foi, para mim, uma verdadeira surpresa. É um diamante no mundo da música pop, não há nada que a ele se assemelhe. Mac Miller criou algo que não é categorizável, aproximável ou comparável. Criou algo único.

Na semana em que faz três anos que Mac Miller nos deixou, escrevi este texto em jeito de homenagem a este músico que nos deu tanto e que tinha tanto mais para nos dar.


Sara Cal

Título do álbum: "Circles" Ano de edição: 2020 Editora: Warner Records Inc. Duração: 48:44 minutos

Produção: David x Eli; Eric Dan; Guy Lawrence; Jon Brion; Mac Miller; Shea Taylor.

Palavras-chave: “rap”; “lo-fi”; “álbum póstumo”; "ataraxia".

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