Zé, o puto feio dos EUA
Foi num dos primeiros dias de 2020 que, numa loja de CDs em plena baixa lisboeta, me cruzei, como que por acaso, com um disco dos Ugly Kid Joe. O álbum em causa, editado em 1998 pela Mercury, intitula-se “As Ugly As It Gets (The Very Best of Ugly Kid Joe)”, e trata-se, como o nome indica, de uma compilação dos maiores êxitos da banda. O que atiçou a minha curiosidade, na altura, foi a descrição que o funcionário da dita loja (a quem devo e agradeço fundamentais descobertas musicais ao longo dos anos, tal como o inesquecível e obrigatório “Covenant”, dos Morbid Angel) fez da sonoridade daquele grupo formado em 1989 e do qual nunca tinha, até então, ouvido falar: “é uma espécie de Nirvana, muito popular nos anos 90”. Intrigado como estava com essa descrição estilística vaga e pelo carácter enigmático do grafismo do álbum (a “mascote” do grupo na capa do CD, o dito “ugly kid Joe”), comprei a compilação, o que me levou, em pesquisas feitas pouquíssimo tempo depois, a descobrir o álbum “America’s Least Wanted” (ed. 1992), o primeiro LP e maior sucesso comercial da banda (como comprova o facto de mais de metade das faixas da referida compilação serem originárias desse álbum).
Numa primeira escuta, logo me vi obrigado a discordar do simpatiquíssimo funcionário, não obstante o seu grande conhecimento e imaculadas intenções para com o seu cliente. De facto, a combinação sonora que me apanhou desprevenido (e que tão rapidamente impôs a sua presença no meu mundo musical) trouxe consigo não apenas Nirvana, mas todo um conjunto perfeitamente equilibrado de influências, estilos e géneros musicais que os membros de Ugly Kid Joe tão brilhantemente uniram num só. Esse resultado sonoro é algo perfeitamente único e característico desta banda, convergindo nesta linguagem tão rica personalidades do mundo do hard-rock e heavy-metal que jamais veríamos juntas. Falo de bandas como Nirvana e Guns N’ Roses (velhos rivais dos anos 90), Mötley Crüe e Bon Jovi, Motörhead e Steel Panther (será que Lemmy teria ‘paciência’ para Michael Starr e Satchel?), Metallica e Megadeth.
O álbum abre com feedback proveniente de uma guitarra elétrica ligada a um velho amplificador a válvulas, provavelmente um dos sons menos desejados no mundo da música “popular”, porém recorrente nos géneros punk, hard rock e heavy-metal (já para não falar de todos os experimentalismos que recorrem a este tipo de sonoridade). Em ‘Neighbour’, o jogo entre guitarra lead e guitarra ritmo faz lembrar a dinâmica e os riffs de Slash e Izzy Aldrin, dos míticos e já referidos Gn’R. No interlúdio desta música, ouvimos a irreverência de Whitfield Crane (vocalista), a meu ver inspirada pela mentalidade juvenil e desviante de uns Black Flag, mas também pelo ambiente satírico que, afinal, caracteriza a discografia dos Ugly Kid Joe: desde o nome da banda aos nomes dos álbuns, tudo são paródias ou referências a música já existente ou à situação socioeconómica dos EUA, como vemos em vários versos da faixa ‘Panhandlin' Prince’.
“Turn off that devil music!”, no início de ‘Goddamn Devil’, é uma crítica feroz, porém que muito facilmente passará despercebida. A voz de Crane nesta faixa (bem como em ‘I’ll Keep Trying’) remonta o ouvinte para o ambiente do hair/glam metal dos anos 80, movimento hoje representado (se bem que satiricamente) pelos Steel Panther.
Em ‘Come Tomorrow’, não poderia a voz pertencer a Myles Kennedy, eterno vocalista dos Alter Bridge e compincha-mor de Slash? E, seguindo a mesma lógica, não poderíamos imaginar o semideus Lemmy a cantar ‘Madman’ (ignorando, claro está, pequenas idiossincrasias contextuais como as referências constantes à Disneyland, algo que, decerto, não veríamos em Motörhead)?
‘So Damn Cool’ relembra o infame arranjo que Rob Trujillo e Kirk Hammet (dos Metallica) fizeram do tema ‘When Doves Cry’, de Prince, em setembro de 2018, perante uma audiência estupefacta e à beira do motim. ‘Don’t Go’ traz consigo o espírito típico das bandas de garagem dos anos 90, com uma clara homenagem de Klaus Eichstadt, o guitarrista dos Ugly Kid Joe, a Eddie Van Halen (o “cavalinho”, assinatura de EVH, no final do solo de guitarra) e, na segunda secção, uma corruptela harmónica de ‘Sympathy for the Devil’, dos Rolling Stones. O ritmo funky de ‘Same Side’ demonstra, acima de tudo, as capacidades musicais de Cordell Crockett, baixista da banda, e é em ‘Cats in the Cradle’ que vemos clara a influência de um tal Jon Bon Jovi. ‘Everything About You’ foi o maior hit de Ugly Kid Joe, e não por acaso, tratando-se, a meu ver, da sua faixa mais criativa (como se vê, principalmente, pelo final).
O álbum termina com uma balada pop-rock (‘Mr. Recordman’, cantada por Eichstadt e não por Crane), cujo final profetiza que o álbum seria “huge, a big, big record”, algo que, na altura, se verificou (afinal, 3 singles entraram nas tabelas de grande sucesso comercial e o álbum rapidamente foi “certified double platinum”). Contudo, hoje em dia, tal como ‘Busy Bee’, também nós vemos o mundo passar, neste canto ocidental da Europa, nem sempre reconhecendo pequenos-grandes grupos como os Ugly Kid Joe, que têm tanto para nos oferecer.
Guilherme Santos
Título do álbum: America's Least Wanted
Ano de edição: 1992
Editora: Mercury
Duração: 59:08'
Produção: Ugly Kid Joe, Mark Dodson, Michael Dodson, Ryan Dorn
Palavras-chave: "irreverência"; "hard-rock"; "juvenil"; "metal alternativo"; "influências musicais"; "anos 90".