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Jinjer e Micro (2019): a arte de não julgar um livro pela capa

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Micro (2019) é o quinto lançamento discográfico e o segundo EP (“extended play”, um álbum mais curto do que o normal, neste caso com 20m12s) dos Jinjer, banda Ucraniana de Donetsk. Isto sem contar com o EP Objects in Mirror Are Closer Than They Appear (2009), lançado por uma formação que, por não incluir nenhum dos membros que, atualmente, constituem a banda, não é por estes considerada “válida”.


Os Jinjer, hoje um dos mais significativos estandartes da resistência cultural ucraniana à invasão e ofensiva russa, são um power trio (+voz) à la British rock constituído por Vladislav Ulasevich (bateria), Eugene Abdukhanov (baixo), Roman Ibramkhalilov (guitarra) e Tatiana Shmailyuk (voz). Como a designação indica, vindo da linhagem de uns Cream, Zeppelin, ou mesmo de uns Hendrix Experience, um power trio designa uma banda composta por um baterista, um baixista e apenas um guitarrista. Tal é o caso dos Jinjer, este grupo que apanhou o mundo de surpresa com o single “Pisces” (2016), mas há que não esquecer, atrevo-me a dizer, a peça fundamental neste puzzle de metal progressivo, djent, metalcore e deathcore melódico: a vocalista.


Tatiana Shmailyuk vem popularizar – e de que maneira! – um papel tradicionalmente (salvo certas exceções que penso conseguir contar pelos dedos das mãos) ocupado por homens, o de vocalista de uma banda de heavy-metal. Influenciada por Opeth (claro, quem mais…?), afirma ter feito várias sessões de “treino” em que ia para as ruas de Donetsk gritar para os carros a sua terna versão do clássico “Dig” dos Mudwayne (tudo isto com temperaturas inferiores a -15ºC, como conta em entrevista à Loudwire). Curiosamente, Tatiana afirma ainda que só durante os ensaios da banda aprendeu a executar e controlar os guturais que hoje mais caracterizam o seu estilo vocal. E assim nasceu uma das vozes que, seguindo as pegadas de gigantes screamers como Tom Araya (Slayer), Phil Anselmo (Pantera), Corey Taylor (Slipknot) e Mikael Åkerfeldt (Opeth), se encontra na vanguarda do metal moderno, guiando o género para uma nova e entusiasmante direção.


Nos Jinjer, a bateria assume o seu papel tradicional: o de suster o esqueleto rítmico das canções, servindo de base para as melodias e harmonias que são colocadas por cima. Contudo, tal é tudo menos entediante, ao contrário do que possa parecer, pois Vladislav trata-se de um baterista que parece ser um cruzamento perfeito entre o caos de um Moon (The Who), Bonham (Led Zeppelin) ou Portnoy (Dream Theatre - I) com a técnica irrepreensível de um Grohl (Nirvana), Hawkins (Foo Fighters), Mangini (Dream Theatre - II) ou Weinberg (Slipknot), todos eles bateristas de excelência. O seu estilo é, então, contido, mas muito criativo, sabendo perfeitamente onde e quando “complicar” (ou, digamos, “embelezar”). Eugene e Roman, respetivamente baixista e guitarrista, funcionam como uma equipa e, simultaneamente, como uma máquina bem oleada: o registo grave da guitarra (afinada uns quantos tons abaixo da afinação standard) aproxima-a do baixo e os dois complementam-se, em riffs malabaristas, com grande sucesso: o estilo de Roman alterna entre acordes abertos, arpejos (nas partes limpas, sem distorção) e riffs, enquanto Eugene frequentemente dança pelo braço do seu instrumento, executando complicadas sequências de escalas, tappings e outras impressionantes e belas técnicas. Dinâmica semelhante com a dos The Who, banda de culto (e de referência) em que Townshend (o guitarrista) se via obrigado a manter o ritmo com power-chords e formas musicais simples porque Moon (baterista) e Entwistle (baixista) se entretinham com floreados e formas musicais muito mais complexas, e até mesmo caóticas em alguns momentos – uma banda, de certo modo, virada do avesso. Aqui, ao menos, Roman parece ter o apoio de Vladislav, o que lhe dá liberdade para, em conjunto com Eugene, compor os riffs “esquisitos” (porém belos, pesados e bem eficientes) que completam o poderoso instrumental Jinjeriano. Tatiana, por sua vez, alterna entre guturais graves (que, a uma primeira escuta, especialmente se desatenta, garanto que chocarão, por falta de hábito e pela natureza peculiar do encontro com algo realmente único – coisa rara, hoje em dia, especialmente nas Artes), melodias “limpas” em que demonstra toda a sua tessitura, controlo e versatilidade, e um intermédio, uma “zona cinzenta” carregada de energia e controlo técnico em que a sua voz parece estar prestes a quebrar (para termo de comparação, especialista nisto é M. Shadows, dos Avenged Sevenfold). As letras são também poderosas, fortes, tristes, inteligentes e cómicas (e/ou irónicas), quando apropriado, e Tatiana canta-as ou grita-as consoante a emoção que quer transmitir, usando essa sua versatilidade quase como um recurso de estilo. Tal é evidente, por exemplo, nos versos:



“Voracious ape who walks upright

Who deserts life to satisfy his appetite

Don't you remember you were the size of a bean?

Now what a shame to wear the name of a 'human being'

Oh, here you are! Vertically standing!

He, who calls himself intelligent

But has not much for understanding

Oh, here you go, Mr. Know-it-all!

I made a mistake when I created you long time ago)”

 

“Ape” (Micro, 2019)

 


Num certo sentido – e num certo sentido apenas -, a música dos Jinjer não é, em papel, assim tão diferente da dos ABBA. O paralelo que faço, desenhado especialmente para chatear os puristas e elitistas do género, baseia-se apenas num fator: ambos os grupos produziram música que, à superfície, parece simples (canções), mas que escondem, por baixo, camadas e camadas de dificuldades e complexidades. No caso do grupo sueco, tal nota-se na produção e nos arranjos (muito trabalhados e com grandes instrumentações, à la Beach Boys, mas com sintetizadores e instrumentos elétricos em vez de fanfarras); no caso do grupo ucraniano, contudo, tal nota-se nos riffs, nas estruturas das canções (que fazem com que caiam também sobre a alçada do termo “metal progressivo”) e no processo composicional, que envolve modulações e tonicizações, polirritmias, compassos irregulares e outros truques e manhas que fazem da música um quebra-cabeças ainda mais complexo e interessante.


Em “Ape”, Jinjer reflete acerca do processo evolutivo, desde a forma prima do nosso planeta até ao aparecimento e florescimento do ser humano (“It was raining heavily for a thousand years / And the fireball became an ocean / That cooking water, the primal soup / A natural life-giving potion. / This substance strove to find a way / To create another form of miracle”). A música é pesada e Tatiana alterna entre uma voz limpa, num registo irónico e julgador, e gritos, relembrando-nos do milagre que foi (que é) a nossa evolução e perguntando-nos com que direito, sendo nós tão pequenos, destruímos a vida que nos rodeia para suster a nossa?


“Dreadful Moments always last too long” é o mote da canção que se segue, “Dreadful Moments”, em que Tatiana reflete acerca de como uma infância marcada por abuso físico influencia o resto da vida de quem a experiencia. Nesta canção cantada na primeira pessoa – o que só a torna mais real, mais próxima –, o sujeito pede ajuda à mãe, figura protetora, para lidar com o violento pai, mas não parece ser ouvido (“[…] no matter how I cry”).


“Teacher, Teacher!” e “Perennial” são dois dos maiores êxitos dos Jinjer, para além de duas faixas em que a banda demonstra toda a sua versatilidade, tudo um pouco do melhor que tem para oferecer. “Teacher, Teacher!” começa com um riff lento e pesado que faz lembrar o djent de bandas como Messhuggah ou Periphery, rapidamente evoluindo para um mais rápido cujo ritmo estará presente durante quase toda a música. Esta é, talvez, a faixa mais pesada de Micro e a letra debruça-se não só sobre o modo como não devemos acreditar cegamente no que ouvimos da parte de uma figura de autoridade (neste caso, uma freira professora que, num colégio católico, maltrata os seus alunos), mas também no facto de que essa mesma figura de autoridade pode apenas estar a fazer aquilo que conhece ou que acha ser correto, dando origem a um círculo vicioso difícil de quebrar. Os blast-beats da bateria combinados com os riffs rápidos tocados em uníssono pela guitarra e pelo baixo ajudam a reforçar o ambiente tenso e violento que a letra evoca.


Os versos de “Perennial” são assustadoramente belos e o ponto de vista de um sujeito feminino, algo raramente visto no mundo do metal, traz um caráter único à canção (evidente em versos como “With a few petals on my breasts”), que se debruça sobre os estados depressivos que vêm com o outono e com o inverno. O sujeito poético afirma que irá sobreviver a estas estações, como se de um coma se tratasse, erguendo-se no fim para viver (e não sobreviver) de novo. A ponte desta música, após o segundo refrão, destaca-se, trazendo consigo os tons limpos e a calma apática da introdução, crescendo depois para um refrão final que simboliza o reerguer de um corpo antes letárgico. Neste vídeo, gravado ao vivo no Wacken Open Air 2019, para além de uma performance excecional, vemos Tatiana contar esta história (e todos os seus pormenores e simbolismos) não só com a voz, mas também com o corpo (chamo a atenção especialmente para o minuto 3:59, em que canta os versos “From the ashes of my roots / The new me will rise to live again”).





Micro termina com uma pequena faixa instrumental, um motivo em loop tocado por Eugene e acompanhado por Vladislav, que parece fechar o EP com um caráter leve, quase brincalhão, absolutamente contrastante com o resto do disco. O álbum é pequenino, tem apenas 4 singles, mas destaca-se em muitos aspetos e deixa-nos a querer muito mais. Felizmente, temos a discografia toda dos Jinjer e tournées europeias e/ou mundiais muito regulares – para nos saciar o apetite… e de que maneira!




Guilherme Santos



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