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“We Love You”: progressismos e experimentalismos no seu melhor feat. Avenged Sevenfold

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Não é de estranhar que toda e qualquer banda, a partir de certo ponto, sinta a necessidade de inovar, de experimentar, de enveredar por caminhos novos. Se não por necessidade – por pressão das editoras, dos fãs, da indústria e do meio em que se inserem, meio esse, em princípio, em constante mutação e evolução –, pelo entusiasmo e bem-estar mental dos músicos que a compõem. Os Beatles foram para a Índia em 1968 e de lá trouxeram novas sonoridades, mas também novas ideias e temas para as suas canções; o Bob Dylan abraçou a eletrificação dos instrumentos musicais no Newport Folk Festival de 1965; os Slipknot abandonaram a sonoridade crua, caótica e agressiva que tinham nos dois primeiros álbuns (Slipknot, 1999, e Iowa, 2001) e, depois da colaboração com o produtor Rick Rubin em 2003 para o álbum Vol. 3 (The Subliminal Verses), renderam-se aos grandes refrões cantados, a solos de guitarra e a técnicas de produção e arranjos típicos do metal moderno.


Um artista – ou um grupo de artistas – procura incessantemente a maneira mais eficiente de criar, de sentir que está a tirar de dentro de si algo semelhante a um veneno. Este processo manifesta-se primeiramente, em termos visuais, em forma de movimentos corporais muito específicos e altamente coordenados e, de seguida, no caso da música, de forma sonora. A expressão – ou a criação – eficaz, esta procura sem fim, pode ser sumarizada por uma simples questão: como posso maximizar o meu conforto e a eficiência dos materiais ou equipamentos com que trabalho de modo a transmitir de modo (o mais) direto (possível) aquilo que estou a pensar, a sentir, a imaginar, ou a querer que outros pensem, sintam ou imaginem?


Os Avenged Sevenfold não são estranhos a esta experimentação, a esta constante busca pela nova e mais eficiente forma de expressão imediata do sentimento e de criação artística. Por isso mesmo vemos, ao longo da sua discografia, uns quantos temas que, de facto, se destacam por serem completamente diferentes ou por oferecerem algo único em relação aos outros (convém não esquecer que esta é a banda que, em 2001, editou o álbum de estreia Sounding the Seventh Trumpet, um álbum de metalcore e hardcore-punk – mais direto que isso em termos musicais dificilmente se encontra). Como disse, há temas que se destacam, aqui e ali, pela sua originalidade e pelo modo como evocam sentimentos tão diferentes e de forma tão eficiente no ouvinte: “And All Things Will End”, “M.I.A.”, “Save Me”, “Exist” (curiosamente, todas as faixas finais dos álbuns a que pertencem) e, claro, a meu ver, o magnum opus da banda, “A Little Piece of Heaven”. Resta ainda dizer que, por vezes, as influências do rock e metal progressivo (bandas como Rush, King Crimson, Yes, Genesis, Dream Theater, entre outras) dificultam a distinção entre o experimentalismo e a “simples” estrutura, composição e produção de uma faixa progressiva.


O seu mais recente lançamento – o single “We Love You” – apresenta-se como as duas coisas: por um lado, tem traços do experimentalismo de um Zappa e um caráter que parece genuinamente improvisado; por outro, a sucessão de secções inteiramente diferentes remete para a música progressiva e, em conjunto com o uso de complexas orquestrações e grandes ensembles, para uma tendência musical popularizada por bandas da West Coast (de onde originam os Avenged Sevenfold, não por acaso) como Mr. Bungle, Oingo Boingo e Fishbone.


“We Love You”, single lançado a 12 de maio no YouTube em conjunto com um vídeo VR 360º sobre o qual não me debruçarei largamente, abre com uma bateria carregada de frenéticos hits de tarola e pedal-duplo. Pouco depois, entram também as guitarras com grandes acordes abertos e a voz com um efeito que cria a ilusão de que M. Shadows, vocalista, se afoga ou fica sem rede. Nisto, a mensagem de esperança e de complacência que a letra transmite (“There you are, you’ve come so far / Sunny days, the air tastes so sweet, flowers greet / Birds will sing you mean everything / You can be anything”) parece apenas uma ilusão, algo em que dificilmente acreditamos.


Depois de um break de baixo – isso mesmo –, a bateria volta a ficar sozinha em grande plano com uma batida completamente nova, um “four-on-the-floor” típico da EDM e da dance music dos anos 60 e 70 que cria a base para uma secção que, liricamente, parece debruçar-se sobre a ganância por detrás das grandes empresas – o vídeo reflete este conceito mostrando-nos o interior de uma casa familiar, confortável, à medida que a lareira se apaga e que o mundo à sua volta se transforma de um cenário campestre solarengo para uma grande metrópole, descaracterizada e gentrificada.

 

“More power

More pace

More money

More taste

More sex

More pills

More skin

More shills

Build tall

Build higher

Build far

Build wider

Build here

Build down

Build up

Build now”

 

 

O refrão que se segue incide sobre o modo como a sociedade capitalista nos conforta, dizendo-nos “Look at the way you go / You’re one in a million / And you know, it shows” numa voz suave, acariciando o nosso ego e contribuindo para a meritocracia tão presente na sociedade moderna. Porém, a meio da frase que se segue, “And we love you (…)”, o tom muda e Shadows passa da voz suave e condescendente, quase irónica, com que canta estas quatro palavras, para um grito como não o ouvíamos fazer há já uns anos: “(…) unto the mud!”. Trata-se do manifesto capitalista.


O verso seguinte é semelhante, musical e liricamente, ao primeiro, e o vídeo mostra-nos já um cenário pós-apocalíptico com imagens retiradas do universo da ficção científica. O refrão que se segue é ainda mais calmo e espaçoso do que o primeiro e Shadows canta-o com uma voz terna e, ao mesmo tempo, exposta e frágil, ao ponto de quase quebrar. No entanto, os guturais regressam no verso “Do unto the mud / Mud!” e a música é de seguida transportada para uma secção pesada, com riffs energéticos e distorcidos e uma voz à base de guturais, reminiscente de uns Korn ou de uns Slipknot, em que a letra reflete o individualismo envolvido no processo de ascensão social e o efeito que isso tem na “body stack” pela qual passamos e que vamos acumulando no caminho até ao topo.


Depois de um solo de guitarra no qual encontramos vestígios de um Synyster Gates – guitarrista solo – muito mais convencional no meio de todo um modalismo quebrado e desconcertante, vemos o regresso do verso, que desta vez vai acelerando até acabar na repetição da palavra “build”, simbolizando uma mentalidade em que a maior preocupação é a quantidade e não a forma, o conteúdo ou a qualidade.


A canção acaba com uma reflexão sobre a falta de livre-arbítrio na sociedade capitalista, incidindo sobre o modo como parecemos achar que fizemos uma escolha por nós próprios, mas que na verdade se trata de algo que nos foi imposto sem que nos apercebamos – e, pior ainda, que aparenta ser precisamente aquilo que merecemos. A última secção, instrumental, é constituída por duas guitarras acústicas, uma a fazer a base em acordes e a outra um solo em slide como no country e gypsy jazz, duas das maiores influências de Gates fora do mundo do metal.


“We Love You” é um tema arrojado, uma jogada incerta, imprevisível e muito corajosa. De forma geral, os fãs old-school de heavy-metal não são conhecidos pela sua mente-aberta nem pelo modo como aceitam facilmente grandes inovações por parte dos seus artistas preferidos. Em 2023, vinte e três anos após termos entrado num século em que a capacidade de atenção do público comum parece diminuir dia após dia, lançar uma faixa progressiva e altamente experimental de 6’13’’ que muda radicalmente a cada trinta segundos quando a banda em questão não se encontra já nesse nicho (quando não falamos de uns Dream Theater, de uns Animals as Leaders, ou de uns Periphery) pode quase levá-la ao esquecimento. Mas tanto os fãs como os críticos, surpreendentemente, parecem estar a ter uma reação muito positiva a este fenómeno.


O muitíssimo antecipado álbum “Life Is But A Dream” sai na íntegra no dia 2 de junho de 2023 – dia da publicação deste artigo – e estamos ansiosos para ver o que os Avenged Sevenfold têm para nos oferecer com este e com os seus futuros trabalhos.

 

 


Guilherme Santos



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