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“Metropolis, Pt. 2: Scenes from a Memory”: ópera dos tempos modernos em jeito de prog metal

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“Metropolis, Pt. 2: Scenes from a Memory”, lançado em 1999 pela Atlantic Records, trata-se, a meu ver, do magnum opus dos gigantes do metal progressivo Dream Theater. Este, que é o quinto álbum da sua riquíssima discografia, vem, na verdade, de uma provocação e, em particular, da quinta faixa de “Images and Words” (1992), intitulada “Metropolis - Pt. 1: The Miracle and the Sleeper”, tema esse cujo título consiste numa piada sobre os clichés associados a esta cena musical, visto que nenhuma sequela para esta canção esteve alguma vez prevista. Claro está que tudo mudou em 1997/1998, quando James LaBrie (voz), John Petrucci (guitarra), John Myung (baixo), Jordan Rudess (teclas, neste que foi o seu álbum de estreia na banda) e Mike Portnoy (bateria) decidiram desenvolver este tema e, a partir dele, criar o álbum de que, hoje, falamos.

“Metropolis, Pt. 2: Scenes from a Memory” (ou apenas “Scenes from a Memory”) trata-se de um concept album (ou "álbum conceitual"). Quer isto dizer que é um álbum consistente, um álbum no verdadeiro sentido do termo, na medida em que se assemelha a um organismo uno e vivo, pois tem, no seu âmago, um conceito unificador que abrange todas as suas faixas, que se desenvolvem e seguem umas atrás das outras de modo absolutamente natural, tal qual metamorfose das plantas, à semelhança do que Goethe teorizou. Neste caso, tal verifica-se por intermédio de duas principais vias: das letras, que contam uma surreal e intrigante história que passarei a contar, e da música, que foi composta, intitulada e interpretada como, depois disso, analisaremos.

Dir-se-ia que a grande referência temática para a história que unifica todo este álbum foi, mais ainda do que a faixa “Metropolis - Pt. 1: The Miracle and the Sleeper” anteriormente referida, o drama noir cinematográfico de Kenneth Branagh “Dead Again” (1991), devido às inúmeras semelhanças entre uma história, a do álbum, e outra, a do filme. O álbum baseia-se em redor de Nicholas, personagem principal atormentada e angustiada, sujeita ao “mal de vivre” Baudelairiano, que surge na ação em plena terapia de “Past life regression”. Tal trata-se de um método terapêutico com raízes que remontam ao século II A.C., e que, mais suportado por teorias religioso-espirituais orientais do que propriamente pela ciência, defende que, através da hipnose, o sujeito poderá entrar em contato direto com memórias reprimidas das suas vidas ou reencarnações passadas, visto que estas, assim como o karma, segundo estas teorias, ficam sempre a nós (ou seja, à nossa alma) ligadas. Entre muitas outras razões, um dos motivos pelos quais esta terapia parece ser tão mal vista e desacreditada no meio científico é pelo facto de que, em plena hipnose, perguntas sugestivas são feitas pelo terapeuta de modo a evocar certas memórias, tornando-as (se, efetivamente, surgirem ou forem criadas com sucesso) absolutamente indistinguíveis das memórias reais que o sujeito foi colecionando durante a sua vida terrestre, assim confundindo vida com ficção, imaginação e sonho. Há que não esquecer ainda as fortes influências católicas aqui presentes, que complementam esta tão relevante faceta espiritual do álbum: Petrucci, principal letrista da banda, é católico praticante, e tal bagagem religiosa pode ser assinalada, nomeadamente, no refrão da faixa “Scene Eight: The Spirit Carries On” (“If I die tomorrow / I'd be all right / Because I believe / That after we're gone / The spirit carries on”).

De volta à história: Nicholas, em pleno estado de hipnose induzido pelo hipnoterapeuta, cuja voz e cujo metrónomo são os primeiros sons que ouvimos logo no início do álbum, começa a ver (ou antes, a relembrar-se de) Victoria Page, uma rapariga que terá vivido anos antes e cuja vida e memórias parecem, agora, a Nicholas, tão familiares, como se da sua própria vida se tratassem (“(…) My subconscious mind starts spinning through time / To rejoin the past once again / Nothing seems real, I'm starting to feel / Lost in the haze of a dream / And as I draw near, the scene becomes clear / Like watching my life on a screen / Hello, Victoria! / So glad to see you, my friend” – “Scene One: Regression”). Rapidamente, Nicholas descobre que Victoria (uma das suas vidas passadas, claro está) foi assassinada e crê ainda que esta o assombra (afinal, vê-a nos espelhos em que se olha e nos seus sonhos) para que este exponha a verdadeira causa da sua morte, pelo que Nicholas sente que nunca poderá de facto viver em paz consigo mesmo enquanto não o fizer e não puder dar esse assunto por encerrado (“Uncanny, strange Déja Vu / But I don't mind, I hope to find the truth” - “Scene Two: II. Strange Déja Vu”). Nicholas percebe que Victoria havia começado a distanciar-se do seu namorado, Julian, devido aos seus vícios relacionados com jogo, cocaína e álcool, e que se habituara a encontrar conforto nos braços do seu cunhado, Edward, irmão de Julian. Descobrindo isto, Nicholas visita (através ou da sua imaginação ou das memórias da sua vida passada, dependendo de se acreditamos ou não neste método terapêutico cientificamente duvidoso) a casa onde tudo aconteceu, que o parece “chamar”: “There's a room at the top of the stairs / Every night I'm drawn up there / There's a girl in the mirror / Her face is getting clearer” – “Scene Two: II. Strange Déja Vu”). Neste ponto, Nicholas acredita que Julian terá matado Victoria devido aos ciúmes que sentia e que, depois, se terá matado a si próprio, como indica um recorte de jornal da época que cita uma declaração de uma testemunha (“A witness heard a horrifying sound / He ran to find a woman dead and lying on the ground / Standing by her was a man / Nervous, shaking, gun in hand / Witness, says he, tried to help / But he'd turned the weapon on himself” – “Scene Four: Beyond This Life”). Esse jornal cita ainda um bilhete encontrado no bolso de Julian, que ajuda a comprovar que ele se terá suicidado após ter assassinado Victoria (“They continued to investigate / They found a note in the killer's pocket (…) / «I feel there's only one thing left to do / I'd sooner take my life away than live with losing you»”). Contudo, suspeito em relação ao que terá, de facto, acontecido, e cada vez mais intrigado e empático em relação à inocência de Victoria e à injustiça que foi o seu misterioso assassinato, Nicholas conversa com um idoso familiarizado com o caso, e vemos nesta secção uma forte indicação de que este idoso poderá ser uma reencarnação de Julian.

No segundo Ato, Nicholas descobre que, transtornada e vulnerável após o fim da sua relação com Julian, Victoria recorre a Edward, que, apesar da culpa que sente por estar a ser infiel ao seu irmão, a seduz (“Help! he’s my brother, but I love her / I can’t keep away from her touch / Deception, dishonor / It’s calling me back to my home” – “Scene Six: Home”). Após uma visita à antiga casa de Edward (“Scene Seven: II. One Last Time”), Nicholas pensa ter resolvido verdadeiramente o mistério: Julian teria implorado para que Victoria o perdoasse e aceitasse de volta, porém, quando mais uma vez recusado, este teria matado tanto Victoria como Edward, colocando-se no papel de testemunha que vemos no artigo de jornal. Satisfeito com esta teoria, Nicholas “despede-se” de Victoria (“Victoria’s real / I finally feel / At peace with the girl in my dreams” – “Scene Eight: The Spirit Carries On”) e a sessão de hipnoterapia acaba. É neste ponto que a narrativa assume a perspetiva de Edward, e assim é que descobrimos que, profundamente enamorado e por querer que o seu caso com Victoria fosse algo mais além disso (“Living their other life / Is getting them nowhere / I’ll make her my wife!” – “Scene Six: Home”), quando a vê reconciliar-se com Julian, confronta-os, assassina-os (tal como havia dito o hipnoterapeuta no final da sessão, Edward diz a Vitoria “open your eyes” antes de a matar) e coloca-se no papel de testemunha previamente mencionado. No presente (ainda na última faixa do álbum, “Scene Nine: Finally Free”), Nicholas chega a casa seguido, em segredo, pelo hipnoterapeuta, que lhe diz mais uma vez para abrir os olhos. A música corta para ruído-branco e o álbum acaba, deixando no ar a sugestão (confirmada pela banda no live DVD “Live Scenes from New York” (2001), em que tocaram o álbum na íntegra, tal como fizeram em Londres, em 2020, resultando no álbum “Distant Memories”, duas performances absolutamente inacreditáveis) de que o hipnoterapeuta, sendo, na verdade, uma reincarnação de Edward, terá assassinado Nicholas (por sua vez, uma reincarnação de Victoria), assim fechando um novo ciclo deste triângulo amoroso.

Este álbum divide-se em Atos, que por sua vez se dividem em cenas, que por fim se dividem em números, mas tal não é a única ponte que podemos estabelecer, tendo como ponto de partida este trabalho discográfico, entre o universo do metal progressivo e o da ópera: veja-se como, à semelhança do que foi feito com o tema “Metropolis – Pt. 1” (do álbum “Images and Words, 1992”), os temas, motivos e melodias musicais aparecem inúmeras vezes ao longo das doze faixas que constituem o álbum (já para não falar de como o primeiro acorde tocado neste álbum é exatamente igual ao último que foi tocado na faixa de 1992). Ou seja, se é verdade que de “Metropolis – Pt. 1” para este álbum há música copiada, adaptada, citada ou relembrada, então é também verdade que um outro fenómeno, igualmente notável, acontece: o segundo tema do álbum, intitulado “Scene Two: I. Overture 1928”, tem mesmo a função de “Overture” (Abertura) no sentido tradicional do termo, remetendo-nos para um passado histórico ao mesmo tempo tão presente (afinal, esta técnica de composição ainda hoje se usa, e esteve muito em voga na ópera italiana do século XIX) como distante, cujas pegadas podemos rastrear pelo menos até às óperas de Claudio Monteverdi, compostas em inícios do século XVII. Uma “Abertura” é, então, o início musical de uma ópera, uma secção, em geral, puramente instrumental que tem como principal (mas não única, note-se) função introduzir os vários temas, motivos, melodias, harmonias e ambientes musicais que irão surgir ao longo da obra. Se estivermos com atenção – e, decerto, estaremos, pois não há como ouvir Dream Theater sem ser com a máxima atenção –, encontraremos muitos pequenos momentos (uns são quase pormenores, outros secções maiores e mais explícitas) desta faixa (“Scene Two: I. Overture 1928”) não só em “Metropolis – Pt. 1” como em todas as outras onze faixas que constituem “Metropolis, Pt.2: Scenes from a Memory”, e tudo isto sem qualquer tipo de prejuízo ou cedência à integridade, consistência, organicidade, qualidade e beleza musicais inerentes tanto a esta faixa como ao álbum inteiro.

Ao falar de “Metropolis, Pt. 2: Scenes from a Memory”, há que ter bem presente que estamos perante o verdadeiro triunfo do metal progressivo. Há que não esquecer que estamos perante uma elite verdadeiramente excecional de intérpretes, de instrumentistas e de génios criativos como encontramos em poucos outros grupos, bandas ou cenas musicais. A receção crítica foi excelente. Para além disso, este álbum é também, a meu ver, o triunfo da guitarra elétrica e do shred técnico, rápido e etéreo; das belas baladas pop-rock que, no momento certo, emocionam profundamente todo e qualquer ouvinte que se identifique com a música; dos ritmos rápidos, complicados, irregulares e “esquisitos” típicos da música progressiva; das harmonias e progressões harmónicas tão clichés (não obstante, tão brilhantemente concebidas) que chegam, por vezes, a ser muito difíceis de analisar ou decifrar; dos solos combinados entre a guitarra e os teclados, combinação sonora característica desta banda; da performance musical como poucas vezes ouvi. É um Álbum que não apenas merece, mas que deve ser ouvido.

Guilherme Santos

Título: "Metropolis, Pt. 2: Scenes from a Memory" Banda: Dream Theater Duração: 01’17’’ Produção: Mike Portnoy, John Petrucci Editora e ano de lançamento: Atlantic Records (hoje Elektra), 1999

Palavras-chave: “hipnose”, “sonho”, “reincarnação”, “memória”, “espiritual”, “metal progressivo”.

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