Uma conversa com Martim Sousa Tavares
Nascido em 1991, Martim formou-se em Ciências Musicais, passando depois por Milão e, mais tarde, por Chicago, para estudar direção de orquestra. No entanto, Martim não é somente maestro. É um divulgador e um pensador, que procura dar à sua paixão, a música, um valor vivo na sociedade, tentando transmitir, através dos seus múltiplos trabalhos, a força que pode ter esta arte na nossa vida, transformando-a em algo melhor e mais justo. Deste modo, Martim complementa a sua atividade de maestro com variadas comunicações, em que tenta expressar esta mesma ideia da relação direta entre a música e a sociedade. É neste contexto que participa em programas de rádio, encontrando-se atualmente a dirigir um programa de autor na Antena 2 e um programa na Antena 3, em conjunto com Hugo Van der Ding. Desde já, obrigada por ter aceitado o nosso convite, é para nós uma honra recebê-lo na nossa revista, o Ruído-Mudo. Qual o seu primeiro contacto com a música? Existe alguma antiga memória definida? É difícil dar respostas categóricas quanto a "primeiras memórias", e é grande a tentação de se fantasiar mesmo sem querer. Prefiro, isso sim, revelar que na segunda metade dos anos 1990, o Público tinha uma colecção de discos "grandes compositores" (os suspeitos do costume, claro) que o meu avô tinha e que eu adorava pôr a tocar. Devia ter 6 ou 7 anos, mas não tinha noção de que aquilo era um género em si, nem distinguia Vivaldi de Schubert.
Porquê a licenciatura em Ciências Musicais? De que maneira sente que este curso contribuiu para o seu percurso atual?
Na verdade CM foi um curso onde entrei por vias alternativas, porque na verdade matriculei-me em Ciências da Comunicação, que abandonei ao fim de um mês. Quando andava a ruminar sobre a licenciatura a escolher, estava indeciso entre tentar composição na ESML ou CM na FCSH. Acabei por decidir que o primeiro e mais importante de tudo era aprender a pensar (sobre) a música, e nesse sentido procurei essa base nas CM. De resto, era um exercício que eu fazia por conta própria há muito tempo. Aos 18 anos já tinha lido os Principles of Orchestration do Rimsky-Korsakov, pela simples sede de conhecimento e curiosidade insaciável em matéria musical.
E o gosto pela direção? Sempre existiu, ou foi-se construindo? Desde que descobri o som da orquestra, e me convenci de que era o meu preferido, esse foi o meu caminho de eleição para pensar e praticar a música. É uma excelente plataforma para observar e intervir no ecossistema musical em que vivemos, e sinto-me completamente em casa, sobretudo porque trago para a minha abordagem muitas coisas que não são exclusivas ou típicas de maestros tradicionais. Faço-o com um sentido de crença e de verdade, nunca para causar certa impressão.
Acerca do seu programa regular na Antena 2, “O mundo à minha procura”, o terceiro programa semanal nesta estação de rádio, onde o Martim nos fala sobre os vários mundos “em que se encontra a orbitar”: estes mundos parecem sempre querer escapar aos nomes mais conhecidos da música clássica. O objetivo é mesmo escapar, fazer inter-relações e dar-nos a conhecer nomes que não conheceríamos se não procurássemos? Fazer-nos sonhar para lá dos rótulos de estilos musicais? Muitas vezes também abordo os autores mais canónicos, mas tento que seja sempre como um plano de fuga, algo que oferece uma luz ou perspectiva nova sobre o/a autor/a em questão. N'A Lira de Orfeu fiz um programa inteiramente dedicado a Beethoven sem que se ouvisse uma só nota escrita por Beethoven. A ideia é sempre furar, abrir caminhos, alargar horizontes. Isso pode fazer-se tanto com nomes marginais como com Tchaikovsky ou Mozart. No entanto, quase bocejo quando vejo 99% dos programas orquestrais, sempre assentes nos velhos nomes do panteão. Acho que um concerto sem novidade é uma oportunidade perdida. E a novidade, tal como os programas rádio, pode estar na forma como se revisita um clássico. Basta ouvir o que fazia o Glenn Gould, meu herói pessoal, ou o que faz a Kopachinskaja com o Currentzis no Concerto de Tchaikovsky.
Fale-nos um pouco do projeto Orquestra Sem Fronteiras, tanto da sua génese como do seu objetivo de “coesão social e territorial”. É um projecto que nasceu da realidade e da necessidade, aquilo a que se poderia chamar uma startup sociocultural, mas que eu prefiro apelidar de plataforma de oportunidades. Oportunidades para todos: músicos, públicos, criadores, mediadores e fruidores. É, até à data, o projecto da minha vida, mas tento que não seja só um reflexo daquilo que eu sinto. Neste momento somos já uma equipa de 10 pessoas a trabalhar nisto, e nesse sentido vai sendo cada vez mais sólido e até incontornável no panorama regional em que actuamos. Basta dizer que nos últimos 3 meses tocámos em 26 lugares do interior, distribuímos 25.000€ em bolsas de estudo a mais de 70 jovens músicos. Não há na OSF dinheiros públicos, e nesse sentido é um projecto miraculoso, que oxalá poderá ajudar a mudar o paradigma da relação entre arte e mecenato, assim como modelos de produção e fruição. Poderíamos dizer que almeja democratizar a música. Para si, como se encontra, atualmente, a cultura musical dos portugueses?
É impossível ser taxativo. Os portugueses da Av. Berna não são os portugueses de Maçaínhas. É fundamental sabermos adaptar-nos a todos os ecossistemas humanos em que nos encontramos e programar com isso em mente. Em todo o caso, mesmo no meu curto espaço de observação, posso dizer que o cenário é de melhoria constante.
De que modo é que gostaria de contribuir ainda mais para o enriquecimento da nossa cultura musical? Tem novos projetos em vista?
Os projectos são infinitos. Tenho projectos literários, o ano passado no confinamento traduzi uma compilação de textos do Bernstein para publicar em livro, mas está a ser muito frustrante lidar com os herdeiros. Tenho convites para eu próprio escrever um livro, mas de momento interessa-me mais a escrita "visual", para a RTP Palco e no futuro para a RTP2. Também me interessa cada vez mais compor, e vou estrear uma ópera infantil neste outono. Também a carreira como maestro vai dando os seus passos, e são cada vez mais as orquestras curiosas com o meu trabalho, o que é bom, para eu não me habituar demasiado ao modus facendi que desenvolvo na OSF. Depois há os projectos de direcção artística, curadoria, direcção musical, cruzamentos disciplinares... uma vida não chega.
Sara Maia